Conversa com Sudhir Kakar: “A Psicanálise será vista como uma prática meditativa moderna; uma meditação a dois”

Esta conversa com Sudhir Kakar –que vestia kurta, colete e calça– começa no movimentado café da Universidade de Ambedkar, no sul de Nova Délhi, e termina em um intercâmbio escrito –mais propício às perguntas que lhe proponho. Oralidade e textualidade se fundem, assim como o fazem Oriente e Ocidente neste psicanalista, escritor e intelectual indiano. Uma das personalidades mais influentes do mundo, segundo publicações como Le Nouvel Observateur e Die Zeit, intérprete da mentalidade indiana, ele está acostumado tanto a dar palestras na Europa e nos Estados Unidos quanto a conversar com sabedoria de guru com Dalai Lama ou estrelas hollywoodianas.

Eu tenho a impressão, te ouvindo agora, de que você é uma espécie de guru. Faz sentido?

Eu também tenho essa impressão! (Ele ri)

Como uma pessoa adquire conhecimento? Na concepção ocidental é, basicamente, pensamento crítico. Aqui, a ideia é entregar-se completamente ao guru –entregando, assim, o pensamento crítico. Mas depois que você absorve… você precisa matá-lo depois –mas não no começo, com o pensamento crítico.

Mas, no final, a disciplina precisa matar o guru, ou o analista, ou o pai…

Ou o que ele representa. E que você não precisa mais porque você tem o guru dentro de você.

A palavra “guru” não tem muito prestígio no Ocidente –diferentemente da Índia, onde é uma questão mais complexa. Podemos pensar na Psicanálise como um tipo de prática “guru-esca”?

Os gurus não são todos indianos, apesar de a Índia parecer ser o habitat natural deles. Seu apelo é a todos que compartilham uma visão romântica da realidade. Diferentemente da visão trágica, que vê a vida cheia de aflições incompreensíveis, na qual muitos desejos estão fadados a permanecer não realizados e que termina com a morte do corpo; na visão romântica, a vida não é trágica, mas sim uma busca romântica. Esta busca pode se estender por muitos nascimentos, com o objetivo e a possibilidade de apreender um outro nível de realidade “mais elevado”, além da realidade compartilhada, verificável e empírica do nosso mundo, nossos corpos e nossas emoções. O guru carrega consigo a promessa de acesso a essa realidade “mais elevada”, cheia de transformações radicais de vida e consciência.

Outra razão para o apelo do guru está no fato de que, exceto para os psicopatas, a maioria dos seres humanos é profundamente moral, no sentido de que há um anseio inconsciente por um self ideal que seja livre de todas as distorções demasiadamente humanas de luxúria, raiva, inveja, narcisismo etc. que afligem nossos selfs empíricos em nossa experiência cotidiana. O guru, assim, incorpora este self ideal. Estabelecer uma relação com o guru por meio de dois grandes construtos da imaginação humana –idealização e identificação– é estabelecer uma relação com um self ideal e moral.

Para pessoas influenciadas pelas ideologias modernas de igualitarismo que se originaram no Ocidente, a suscetibilidade ao carisma do guru parece uma reflexão de um self enfraquecido, de um desamparo psíquico que precisa ser revertido por uma idealização e identificação com um guru que incita esperança com sua própria posse de uma autoconfiança inabalável, envolvendo compaixão e certeza de suas convicções. Para tal pessoa moderna, a entrega do seguidor ao guru é um sinal de regressão infantil –a entrega da responsabilidade própria do adulto.

A visão tradicional indiana a respeito de entrega é radicalmente diferente e muito mais positiva. Um guru escreveu sobre a experiência do seguidor: “Quando você se entrega ao guru, você se torna um vale, um vácuo, um abismo, um poço sem fundo. Você adquire profundidade, não altura. Essa entrega pode ser feita de muitas formas. O guru começa a se manifestar em você; as energias dele começam a fluir em você. A energia do guru está constantemente fluindo, mas para recebê-la, você precisa se tornar um útero, um receptáculo.” Outro guru exalta os méritos de se entregar assim: “Só há dois modos de se viver: um é em constante conflito, e o outro é entregar-se. Conflito leva à angústia e sofrimento. Mas, quando alguém se entrega com compreensão e equanimidade, sua casa, corpo e coração são preenchidos. Os sentimentos de vazio e falta antes presentes desaparecem.” A experiência ocidental com líderes carismáticos e demoníacos de cultos religiosos ou nações (Hitler, Stalin) naturalmente gerará dificuldade em relação à tradicional exaltação indiana à entrega, idealização e identificação como motores da transformação psíquica. Creio que ambas as culturas, no entanto, concordariam que a atração por um guru é um fenômeno que está no próprio início da vida e interação humanas.

Ainda assim, a “fantasia guru-esca”, principalmente a existência de alguém, em algum lugar, que irá curar as feridas sofridas em relações antigas e remover os males da alma, para que ela brilhe como nova em seu estado mais puro, é comum a muitas culturas. Muitos pacientes ocidentais, a despeito de sua afiliação consciente à ideologia igualitária e a uma relação mais contratual entre médico e paciente, encaram a análise e o analista com uma inflada “fantasia guru-esca” que, no entanto, está mais escondida e menos acessível à consciência do que no caso da Índia, do Irã ou outros países asiáticos.

Você tem sido uma espécie de intérprete da “mente indiana” para o Ocidente. Você acha que este trabalho pode ser feito também por um ocidental?

Certamente. A pessoa só precisa saber que o conhecimento psicanalítico de uma cultura –da “mente” de seu povo– não é equivalente ao seu conhecimento antropológico, embora possa haver coincidências entre os dois. O conhecimento psicanalítico é primeiramente o conhecimento da imaginação da cultura, de sua fantasia codificada em suas produções simbólicas, seus mitos e folclores, sua arte, música, literatura e cinema populares. Um analista ocidental que esteja disposto a mergulhar na imaginação da cultura por um bom tempo, falar a língua e encontrar a população no setting clínico pode certamente fazer esse trabalho.

O que o Ocidente faz e fez com as tradições orientais, e vice-versa?

Acredito que um aumento do intercâmbio mútuo entre a Psicanálise e as tradições meditativas orientais de cura são a melhor chance de um rejuvenescimento de ambas as tradições. No Ocidente, a recepção psicanalítica às tradições orientais tem se limitado a poucos psicanalistas que se interessaram em aprender e reconciliar a filosofia budista e práticas de diminuição do sofrimento com sua própria tradição de investigação psicológica. No Oriente, o interesse dos “mestres” espirituais em aprender com a Psicanálise é ainda mais limitado. Acredito que isso possa –e deva– mudar, para o bem de ambas as práticas. Para dar só alguns exemplos: na Psicanálise, empatia é um requisito central para o analista; a principal ferramenta para reunir dados e entender o paciente. Tolerância e compaixão são os precursores da empatia, e podemos tirar muito proveito de um olhar para a tradição budista –e outras tradições espirituais– em busca de indicações para o cultivo desses sentimentos. De fato, é estranho que pessoas pretendendo ser psicanalistas tenham, em geral, apenas ouvido falar, mas não tenham experiência pessoal a respeito de um dos requisitos primordiais da profissão: escutar o cliente com uma atenção flutuante –algo que cada analista adquire mais ou menos informalmente e sem supervisão, por conta própria. Tal experiência, ausente nos programas de treinamento em psicanálise, poderia ser facilmente oferecida por meio de uma curta oficina de 4 ou 5 dias em meditação –por exemplo, vipassana. Como observou a psicanalista C. Clement (2005), refletindo a respeito de sua própria experiência, o analista que experimenta este modo de meditação tem boas chances de escutar seu paciente de maneira diversa. É provável que fique mais atento ao surgimento de pitadas sutis de medo, tristeza ou desamparo. Tal analista também é capaz de sustentar estes sentimentos por mais tempo e mais profundamente sem precisar lançar mão do esforço apaziguador de organizar e interpretar.

Isto me leva a uma questão bem mais difícil. É possível reconciliar os métodos de transformação de emoções do Budismo e da Psicanálise? Neste caso, minha resposta é um firme “Não”. Na terapia psicanalítica, busca-se acesso ao inconsciente do cliente por meio de métodos como associação livre –isto é, dizendo o que quer que venha à mente–, prestando atenção aos deslizes, hesitações, sonhos e fantasias do cliente e ao que acontece inconscientemente entre o cliente e a/o terapeuta. Linguagem e palavras desempenham um papel importante, apesar de não exclusivo, na terapia psicanalítica.

Da perspectiva budista e sua ênfase na experiência direta, linguagem e palavras distraem-nos da experiência direta. Elas nos distanciam do imediato da experiência para fazer o trabalho cognitivo necessário para a comunicação com o terapeuta. Este desprezo pela linguagem também é comum às tradições espirituais hindus. Como coloca Dadu, santo indiano do século XVI: “O guru fala primeiro com a mente, depois com um olhar. Se o discípulo não consegue entender, o guru o instrui, por último, com a boca”. “Aquele que entende uma palavra falada é um homem comum. Aquele que interpreta o gesto é um iniciado. Aquele que lê o pensamento da mente insondável e indecifrável é um Deus.” Aqui a Psicanálise diverge das tradições orientais, mas ela pode escutar os alertas budistas a respeito das limitações da linguagem e tornar-se muito mais sensível às nuances do silêncio e outras comunicações não-verbais no setting terapêutico.

Na minha opinião, os psicanalistas não podem e não devem rejeitar o veículo da linguagem e das palavras, que trouxe excelentes resultados em termos de insights a respeito do funcionamento da mente humana. Também é possível ponderar se o foco budista exclusivo na experiência direta vem de uma idealização de suas práticas meditativas. Mas, também, muitos psicanalistas veem –e têm orgulho de– sua tradição como uma hermenêutica de suspeita, e acreditam que os budistas operam em uma hermenêutica de idealização. Algo em que a Psicanálise talvez possa contribuir com a prática budista é fazê-la perceber as dinâmicas inconscientes da relação aluno-mestre. Isto é, fazer o aluno tornar-se consciente de sua mudança e reação de transferência em relação ao professor, e fazer o professor tornar-se consciente de suas reações de contratransferência em relação ao aluno. A Psicanálise pode conscientizar o mestre espiritual a respeito do perigo psicológico imposto pela extrema idealização por parte de seus estudantes –um perigo que aumenta com a importância do professor. Transferências negativas, sentimentos negativos e projeções malignas são mais fáceis de manejar, já que elas causam severo desconforto psicológico, forçando-nos a rejeitá-las ao discriminá-las internamente entre o que pertence a nós e o que outros, os estudantes, estão projetando em nós. Esta dolorosa motivação para repelir a invasão do self por outros não existe quando tais projeções são muito narcisicamente gratificantes –como elas inevitavelmente são no caso de estudantes fascinados pelo mestre. É difícil não, ao menos, sentir o cheiro do incenso queimando no seu altar por tantos que proclamam sua grandiosidade. No fim, a Psicanálise duvidará que a transformação de emoções, ou sua completa eliminação, como uma meta da prática espiritual seja uma conquista eterna, mesmo para os mestres iluminados. A ameaça das forças mais sombrias da psique continuará constantemente . Uma pessoa nunca é não-humana.

Seu treinamento em análise foi em alemão. O que se perde quando você é analisado em outra língua que não a sua materna? O que se ganha?

Quando me lembro do meu treinamento em análise em alemão, posso apenas dizer que minha intensa necessidade de ser “entendido” pelo analista –uma necessidade que eu compartilhava com todos os pacientes– deu origem a uma força inconsciente que me fez amenizar as partes culturais do meu self que eu acreditava serem muito estrangeiras para a experiência do meu analista alemão. No amor-de-transferência, o que eu buscava era proximidade com o analista, inclusive o compartilhamento de seus interesses, atitudes e crenças culturalmente moldados. Esta intensa necessidade de ser próximo e entendido –paradoxalmente removendo partes do meu self cultural da arena analítica de entendimento– ficou caracterizado pelo fato de que, em pouco tempo, eu comecei a escrever contos e sonhar em alemão –a língua do meu analista– algo que eu não fiz nem antes nem depois da minha análise.

Mais tarde, anos após o fim da análise, eu também percebi que há um grau de pobreza emocional quando a análise é conduzida em uma língua que não a materna, já que muito da cultura de uma pessoa é codificado. A língua materna de uma pessoa, a língua da infância de uma pessoa, é intimamente ligada com experiências sensório motoras emocionalmente carregadas. Psicanálise em uma língua que não a do paciente corre sempre o risco de levar a um “pensamento operacional”, isto é, expressões verbais sem links associativos com sentimentos, símbolos e memórias. Por mais correta gramaticalmente e rica em vocabulário que seja, a língua estrangeira sofre de pobreza emocional –certamente no que concerne a memórias.

As falhas de uma língua adquirida mais tarde –alemão, no meu caso– foram amplamente demonstradas por um experimento em que os sujeitos ouvem a seguinte pergunta: “Um trem está se aproximando em alta velocidade. Se você empurrar uma pessoa para os trilhos, parando o trem, vai salvar as vidas de outras 6 outras pessoas mais à frente na plataforma. Você empurraria aquela primeira pessoa na direção do trem?” Com pergunta e resposta na língua materna, a maioria das pessoas demonstra sinais de um dilema emocional e não empurraria a pessoa para a morte. A mesma pergunta na língua adquirida evoca uma racionalidade calculada muito maior, e prontidão a empurrar uma pessoa para salvar as vidas de seis.

Foucault, que não gostava de psicanálise, pensava que se tratava de uma espécie de transformação espiritual. Qual é o lugar do “espiritual” em psicanálise?

Foucault tem razão se re-imaginamos psicanálise não apenas como um tratamento médico, mas também como uma empreitada espiritual, uma busca transformadora de autoconhecimento que expande o alcance de nossa compaixão e empatia. Uma análise bem-sucedida seria, assim, uma que leva à autocompreensão e ao crescimento de uma sabedoria que enriquece o sentido de nossa vida e nos motiva a agir além dos nossos estreitos interesses. Uma análise que não se contentaria em alcançar o ideal freudiano do indivíduo autônomo, mas seria como um degrau na direção do indivíduo que se implica.

A Psicanálise será vista, então, como eu prefiro fazer, como uma prática meditativa moderna, uma meditação “racional” a dois (analista e analisando), ocupando um lugar especial entre outros métodos introspectivos que vêm das tradições espirituais do mundo.

Qual seria, na sua opinião, o futuro da Psicanálise?

Acredito que a Psicanálise clássica tenha um futuro limitado como um método de tratamento, embora psicoterapias influenciadas pela Psicanálise ainda continuem a atrair quem não apenas busca o alívio de sintomas, mas também seu “sentido”. Seu futuro será para todos aqueles que buscam introspecção profunda, especialmente biográfica, na composição de suas psiques.

A Psicanálise, desde de sua fundação, tem enfatizado a História. Você acha que hoje em dia precisamos prestar a mesma atenção à Geografia?

Acredito que, no futuro, as contribuições mais importantes para a Psicanálise –para rejuvenescer seu, atualmente estagnado, estado teórico/conceitual– poderão vir da Ásia. A Geografia da Psicanálise irá se tornar tão importante quanto sua História. As contribuições asiáticas à Psicanálise irão, primeiro, relativizar elementos que são, hoje, vistos como universais. Segundo, nesse cenário que eu imagino do futuro da Psicanálise como uma disciplina meditativa, as contribuições asiáticas fornecerão impulsos vindos das práticas meditativas e conceitos vindos das ricas tradições espirituais de suas sociedades –sem que a Psicanálise perca sua singular busca pela verdade psíquica.

Você poderia nos contar algo sobre o complexo de “kern”, complexo nuclear, mas no contexto asiático? Ganesha, Ajase etc.

Freud considerava o mito de Édipo como a narrativa hegemônica de todas as culturas em todos os tempos –embora haja, agora, evidências suficientes sugerindo que sua dominância possa estar limitada a algumas culturas ocidentais em certos períodos de sua história. Ou seja, o complexo de Édipo, em uma ou outra variação, pode realmente ser universal, mas não é igualmente hegemônico em diferentes culturas.

A versão que temos da Psicanálise e a importância fundamental que damos a esta versão é singularmente ocidental –não tão onipresente no imaginário de outros povos. Na maioria das narrativas folclóricas pelo mundo, por exemplo, é o matricídio –e não o parricídio– que é central para a história e seu poder imaginativo.

Na Índia, a narrativa hegemônica é a de Devi –a Mãe-Deus em suas muitas formas– e o que eu chamei de “Fascinação Materna” dos períodos pré-edípico e edípico. Por “Fascinação Materna”, quero dizer: o desejo de se distanciar da mãe combinado com o medo da separação; o desejo de destruir a mãe sufocante que também garante a sobrevivência da criança; e, adicionalmente para a criança do sexo masculino, o desejo incestuoso coexistindo com o terror inspirado por uma sexualidade feminina esmagadora.

Em termos da triangulação do período edípico, para o menino, o pai é menos um rival e mais um aliado no encontro com um materno-feminino superpoderoso; a necessidade do filho por uma “aliança edípica” –isto é, por apoio seguro, solidariedade e disponibilidade emocional do pai num estágio da vida em que os perigos da Fascinação Materna estão em seu máxim– se sobrepõe ao conflito edípico. No complexo de Ganesha, os mitos falam de um filho sacrificando, em favor do pai, seu próprio direito à atividade sexual e ascendência geracional. O filho o faz para dispersar a inveja do pai, e também seu próprio medo primal de aniquilação pelas mãos do pai, enquanto mantém intacto o laço de amor entre pai e filho.

O mito de Ganesha também inverte a causalidade psicanaliticamente postulada entre as fantasias de parricídio e filicídio: ele é carregado de medo de filicídio mais do que de culpa edípica de parricídio. Uma de suas variações, como o complexo de Ajase, foi postulada por Okonogi (1979) como a narrativa dominante do self masculino no Japão. Também aparece no principal mito iraniano sobre relações pai-filho –Rustam e Sohrab.

Você acha que a Psicanálise, tão sensível a diferenças pessoais, é menos sensível a diferenças culturais? O que seria um “analista culturalmente sensível”?

Ele(a) reconhece que seres humanos compartilham elementos universais, mas estes são bem menos numerosos do que muitos –senão a maioria dos– analistas acreditam. O analista culturalmente sensível reconhece que muitas proposições psicanalíticas sobre o que constitui maturidade psicológica, comportamentos de gênero apropriados, resoluções “positivas” ou “negativas” de conflitos e complexos incipientes –que geralmente aparecem trajados como verdades universais– são, na verdade, a incorporação da experiência e de valores da elite ocidental na teoria psicanalítica. Para dar um exemplo: a diferenciação de seres humanos entre gêneros masculino e feminino é universal, mas é nossa herança cultural que elabora para além disso o que significa ser, parecer, pensar e comportar-se como uma mulher ou um homem. Isto fica claro se pensarmos nas esculturas gregas ou romanas que influenciaram enormemente as representações ocidentais de gênero. Nelas, os deuses masculinos são representados por corpos duros e musculosos, e peitorais sem nenhuma gordura. Basta comparar as estátuas gregas e romanas com as representações esculpidas de deuses hindus, ou Buda, em que os corpos são mais moles, flexíveis e, em suas indicações de seios, mais próximos à forma feminina.

A diferenciação menos evidente em termos visuais entre representações do masculino e do feminino na cultura hindu indiana é reforçada por uma forma importante e abrangente de religiosidade, o Vaishnavismo, que não apenas autoriza a busca do homem pelo feminino, como a eleva ao nível de uma busca religiosa-espiritual. Trata-se de uma cultura em que um herói cultural como Gandhi pode publicamente proclamar ter-se tornado mentalmente uma mulher,  e que há tanta razão para um homem querer ter nascido mulher como para uma mulher querer o contrário –tudo isso com a certeza de que iria tocar profundamente seu público. Entre um mínimo de diferenciação sexual necessário para funcionar heterossexualmente com um módico prazer, e um máximo que elimina qualquer senso de empatia e contato emocional com o outro sexo –que é, então, experimentado como uma espécie completamente diferente– há uma gama inteira de posições, todas ocupadas por uma cultura que insiste em definir-se como a única madura e saudável.

Mas também gostaria de acrescentar que, como alguém que tenta ser um analista culturalmente sensível, eu não sou um relativista cultural, mas sim um universalista mínimo. Mesmo questionando muito da superestrutura psicanalítica, eu continuo me apoiando em seus fundamentos, e me afilio a seus pressupostos básicos: a importância da parte inconsciente da mente em nosso pensamento e ação, a significância vital das experiência da primeira infância para o resto da vida, a importância de Eros na motivação humana, a dinâmica do interjogo –incluindo o conflito–  entre as partes consciente e inconsciente da mente, e o insumo vital da transferência e contratransferência na relação terapeuta-paciente. Todo o resto pode ser discutido. E assim como começamos a falar de modernidade no plural –de diferentes modernidades– talvez em breve falaremos das psicanálises japonesa, francesa, chinesa, argentina e indiana.

Talvez devêssemos olhar para elementos universais não como aquilo que é compartilhado, mas como o que deveríamos ter em comum –não como o que é, mas como o que é desejável.

Quais são os laços entre religião e psicanálise?

Desde a firme rejeição de Freud aos rituais religiosos e a crença em Deus, considerando-os resquícios de uma vida mental infantil, psicanalistas têm se vangloriado por sua a-religiosidade.

Mas precisamos lembrar que, apesar de Freud ter rejeitado crenças e rituais religiosos, ele era mais circunspecto, ou até respeitoso, em relação ao terceiro –e, em minha opinião, mais importante– aspecto da religião: o sentimento religioso. Embora chamasse o auge do sentimento religioso de unio mystica –uma regressão ao narcisismo primordial da criança em um “sentimento oceânico”– em outros momentos Freud lamentou ter ignorado o “raro e mais profundo tipo de emoção religiosa experimentado por místicos e santos”. Meu ponto é que precisamos perceber que essa chamada emoção religiosa não se limita a santos e místicos, mas é uma necessidade fundamental nos seres humanos. Na verdade, ela não é nada religiosa e a maioria de nós já a experimentou em claros momentos: o júbilo na presença da natureza; a emoção diante de uma obra de arte ou ao ouvir uma música; a inefável intimidade com a pessoa amada após uma relação sexual, quando os corpos se separaram e estão deitados lado a lado, mas ainda não são dois em suas respostas. Há muitos momentos como esses, pequenas epifanias que escapam da nossa atenção consciente já que esperamos que experiências místicas venham da providência de místicos e santos e, assim, sejam uma exceção ao invés da regra na vida humana.

O canto da sereia da religião está na promessa e entrega de tais momentos: em rituais ligados a ritos de passagem; no culto em casa ou no templo, mesquita ou igreja; em festivais e peregrinações; em práticas místicas e mais.

São os momentos religiosos que superam o que o poeta irlandês William Yeats chamou, em seu poema Meru, de “desolação da realidade”[2]. Esses momentos são flashes que, nas palavras do poeta inglês John Keats, “iluminam o estreito e prosaico mundo da existência diária, um mundo que sempre foi inadequado à nossa experiência e incapaz de suportar o fardo de nossas esperanças”[3].

Esses flashes de luz são como momentos e frases musicais que, repentina e inexplicavelmente, te movem sem que você saiba por quê. Freud era reconhecidamente imune a eles. Experiências e emoções religiosas são mais parecidas com música do que com artes plásticas e literatura. Acredito que nós, psicanalistas, precisamos nos identificar com as virtudes de Freud em vez de nos restringirmos por suas limitações –seja em relação à música ou à experiência religiosa.

Também me pergunto se essa surdez em relação à música da experiência religiosa (no caso do Cristianismo, talvez em igrejas protestantes mais do que nas católicas) não seria outra razão para a crise da ordem liberal em tantos países do mundo. Seria uma tolice ignorar o impulso religioso encontrado não apenas em religiões tradicionais, mas em todas as ideologias e movimentos que prometem a experiência de transcender seus limites individuais, a experiência de ser parte de algo maior que sua existência individual. Além dos princípios da realidade e do prazer, há também o que chamei de “princípio de busca por unidade”, movido por Eros em seu sentido mais amplo –que ignoramos, colocando em risco nossa busca por um entendimento mais completo da psique humana.

Quais são as diferenças, em termos gerais, entre a mente no Oriente e no Ocidente?

De maneira bem geral, há duas versões da natureza da pessoa e da experiência humana que estão misturadas em diferentes proporções nas mentes asiáticas e ocidentais. Uma versão é a que domina a mente de uma pessoa ocidental moderna, e é também a narrativa básica da psicanálise, com suas raízes no Iluminismo. Esta versão sustenta que satisfações e objetivos humanos são fundamentalmente pessoais e individuais. Cada um de nós vive em seu próprio mundo subjetivo, buscando prazeres pessoais e fantasias privadas, construindo uma história de vida que, quando chegar ao fim, desaparecerá. A função essencial da sociedade é preservar a possibilidade dessa realização pessoal. A sociedade não pode oferecer nada positivo; ela não pode adicionar nada essencial para a realização individual. O que ela pode fazer é evitar algo negativo: a interferência em satisfações individuais.

A outra narrativa de mente, comum a muitas civilizações asiáticas, é um contraponto que exalta a comunidade acima do indivíduo. Esta visão enfatiza que pertencer a uma comunidade é uma necessidade fundamental de uma pessoa, e afirma que apenas se alguém verdadeiramente pertence a uma comunidade –natural e desinibidamente– ela(e) poderá entrar no fluxo vivo e levar uma vida completa, criativa e espontânea.

Ambas as visões têm seu lado obscuro. Se o elemento sombrio do individualismo é uma obstinada busca por egoísmo e ambição descontrolada, o lado negro do comunitarismo é sua exclusividade, intolerância e seu potencial para violência. Precisamos entender que ambas as visões existem na psique, mesmo se uma é mais dominante em um momento histórico específico. No Ocidente, por exemplo, a visão comunitária da vida não se tornou ultrapassada, regressiva, patológica etc. Em sua forma maligna, encontramo-la hoje em dia no recrudescimento do comunitarismo nacionalista na maior parte dos países europeus, e no comunitarismo racial nos Estados Unidos.

Diferentemente do Ocidente moderno, a visão oriental (embora eu esteja falando principalmente da visão indiana, com a qual tenho maior familiaridade) do self não é a de uma individualidade restrita e única. A pessoa indiana não é um centro autocontido de consciência interagindo com outros indivíduos similares, como nas civilizações grega antiga e europeia pós-iluminista. Na verdade, na imagem dominante da cultura, o self é constituído de relações. Um indiano não é uma mônada; ele deriva sua natureza pessoal interpessoalmente. Todos os afetos, necessidades e motivações são relacionais, e suas aflições são desordens de relações –não apenas com sua ordem humana, mas também com a natural e cósmica.

Em sintonia com a imagem cultural do corpo em constante troca com o ambiente –ao mesmo tempo em que se transforma por dentro– a pessoa indiana, assim, também tende a experimentar-se mais como um ser mutável cuja natureza psicológica pessoal não é constituída de um “senso de identidade” estável, mas sim de um fluido, que é constantemente formado e reformado por suas interações com o ambiente. As fronteiras da pessoa indiana –entre self e outros, entre corpo e mente– também tendem a ser menos claramente demarcadas. Desta forma, entende-se que uma grande parte da felicidade ou do sofrimento individuais seria vista, na mente indiana, como a parcela que cabe ao indivíduo da felicidade ou sofrimento de sua família, comunidade ou grupo relevante em um contexto específico. Em cada indivíduo, claro, o modo individual e relacional de perceber o self e o mundo estarão misturados em diferentes proporções, embora espera-se que um ou outro domine em determinada cultura.

Gostaria de acrescentar que não estou postulando qualquer dicotomia simplificada entre a imagem cultural ocidental de um self individual e autônomo e o self relacional e transpessoal da cultura indiana. Ambas as visões da experiência humana estão presentes em todas as principais culturas –embora uma cultura em particular possa, por algum tempo, sublinhar e enfatizar uma em detrimento da outra.

Você tem pacientes de vários países. Que possibilidades e limitações você encontra ao trabalhar como um analista que vem de um contexto cultural diferente?

Como um analista deve abordar a questão de diferenças culturais entre o cliente e sua prática? A situação ideal seria que esta diferença fosse mínima, no sentido de que o analista tenha obtido um conhecimento psicanalítico da cultura do paciente por meio de uma longa imersão em seu cotidiano e mitos, seu folclore e literatura, sua língua e sua música –uma absorção não pelos ossos, como é o caso do paciente, mas pela cabeça e coração. Qualquer coisa a menos do que essa posição maximalista tem o perigo de que o analista possa sucumbir à tentação da estereotipificação cultural ao lidar com as particularidades da experiência do paciente. Em díades terapêuticas transculturais, pouco conhecimento é, de fato, algo perigoso, ignorando diferenças importantes, assumindo igualdade quando se trata apenas de similaridade. O que o analista precisa não é de um conhecimento detalhado da cultura do paciente, mas de um questionamento e consiência sérios a respeito das pressuposições por trás de sua própria cultura –a cultura em que ele nasceu e em que foi profissionalmente socializado como um psicanalista. Ou seja, o que estou sugerindo é que na ausência da possibilidade de se obter um profundo conhecimento psicanalítico sobre a cultura do paciente, o analista precisa se esforçar na direção de um estado em que os sentimentos de estranhamento do paciente por causa de suas diferenças culturais em relação ao analista sejam minimizados, e o paciente não remova –ou remova apenas minimamente– a parte cultural de seu self da situação terapêutica. Isto só é possível se o analista começar a valorizar seu próprio Desconhecimento; se transmitir uma abertura cultural que vem de sua tomada de consciência sobre as proposições fundamentais de sua cultura a respeito da natureza humana, da experiência humana e da vida humana realizada, e, então, reconhecer sua relatividade ao vê-las como produtos imbricados em um lugar e um tempo específicos. Ele precisa se tornar sensível à existência invisível do que Heinz Kohut chamou de “moralidades de saúde e maturidade” de sua escola analítica específica.

Como etnocentrismo –a tendência de ver outras culturas com a lente de sua própria– e chauvinismo cultural não-resolvido são patrimônios de todos os seres humanos, incluindo psicanalistas; a aquisição de abertura cultural não é uma tarefa fácil. Vieses culturais podem se esconder nos lugares mais inesperados.

Você acha que a mente de pacientes da elite ocidental molda teorias psicanalíticas?

Sim, completamente. A maior parte do nosso conhecimento sobre como seres humanos pensam, sentem e agem é derivado de um pequeno subgrupo da população humana que o psicólogo Joseph Heinrich chama de WEIRD: Ocidentais, Educados, Industrializados, Ricos e Democráticos[4]. Psicólogos, sociólogos, psicoterapeutas e filósofos são tão WEIRD quanto os sujeitos de seus estudos, tratamentos ou especulações. É este pequeno grupo de pontos fora da curva estatística –uma elite urbana extremamente ocidental– que provém tanto os produtores quanto os sujeitos do nosso conhecimento psicanalítico contemporâneo, que nós, então, prosseguimos generalizando impunemente para o resto da humanidade. Compartilhadas tanto pelo analista quanto pelo paciente –permeando o espaço analítico em que eles funcionam– ideias fundamentais a respeito de relações, família, casamento, masculino, feminino –e outras que são essencialmente ocidentais em sua origem– geralmente permanecem inquestionadas, e são vistas como universalmente válidas. Como se diz, se um peixe fosse um cientista, a última coisa que ele descobriria seria a água.

Você está nos dois lados –mesmo em suas roupas. É difícil encontrar alguém que combine uma educação ocidental com uma mente oriental. Qual o futuro da Psicanálise, visto da sua perspectiva do Oriente?

Eu acho que a Psicanálise, seja no Ocidente ou no Oriente, vai ter que abandonar o modelo médico por completo.

Seu futuro é uma meditação muito moderna, de duas pessoas juntas, uma meditação conjunta. Problemas desaparecem com a meditação, mas esta não é a parte mais importante. A cura de neuroses seria um subproduto da meditação. Mas uma meditação também com palavras, diferentemente de uma meditação mística.

Referências

Clement, C. (2005). The Evocation of Death Anxiety on a Meditation Retreat. Psychoanalytic Dialogues, 15(2): 139-152.

Okonogi, K. (1979) Japanese psychoanalysis and the Ajase complex (Kosawa)

Psychoterapy and Psychosomatics, 1979;31 (1-4): 350-6


[1] Entrevista realizada por Mariano Horenstein em Nova Délhi em janeiro de 2018, complementada por uma longa troca de e-mails.

[2] N. do T. Tradução livre

[3] N. do T. Tradução livre

[4] N. do T: WEIRD: Há, na sigla original em inglês, um trocadilho que se perde na tradução: a palavra “weird” tem cunho pejorativo, significando “esquisito”. (N. do T.)