Siri Hustvedt: “A psicanálise, essa estranha forma de intimidade”

Você fala de um lugar de estrangeiro, vivendo numa Nova York cosmopolita, com uma origem escandinava, falando norueguês e trabalhando como escritora… O papel de uma outsider, que você desempenhou diante da psicanálise, pode ser o melhor lugar para observar… não acha?

Eu concordo completamente. Sempre pensei sobre o que significou, para mim, crescer em duas línguas, ter uma mãe norueguesa e um pai americano. Ele também cresceu falando norueguês. Eu acho que dois idiomas permitem que se tenha duas perspectivas diferentes, porque palavras delineiam uma coisa em uma língua que não são necessariamente delineadas na outra. Tenho certeza de que você sente isso com o espanhol e o inglês o tempo todo, que você de repente percebe como a percepção muda de uma língua para a outra. E mesmo que eu nunca tenha articulado essa divisão quando criança, eu cresci com uma noção de “aqui” e “lá”. Eu tinha um “lá” que era a Noruega. E, quando eu estava na Noruega, eu tinha o outro “lá”, os Estados Unidos. Existem muitos escritores que, por uma razão ou outra, encontram-se na posição de outsider. Eles escrevem para o outro, mas a partir de um ponto de vista marginalizado. Eu acho que, com certeza, tenho a sensação de sempre estar fora, sim. Masa marginalidade como perspectiva é frequentemente mais interessante do que reinarno centro das coisas.

Mas você não acha que estar colocado à margem é, para um psicanalista, uma característica mais estrutural do que acidental? Como para os escritores…

Eu acho que a história da psicanálise depende da cultura em queela se encontra. Nos Estados Unidos, o pensamento psicanalítico freudiano foi adotado com entusiasmo. Dos anos 50 até os anos 70, os departamentos de psiquiatria eram dominados por freudianos. Nos anos 70, quando a primeira geração de antipsicóticos apareceu, houve uma mudança radical em direção ao que hoje é chamado de psiquiatria biológica. Eu tenho a sensação, entretanto, de que há mudanças no ar novamente. 

Estou terminando um livro chamado The delusions of certainty[1],que trata das nossas ideias de mente no Ocidente. No livro, eu critico a falta de fundamento filosófico que frequentemente existe nas pesquisas de neurociência –não em todas, mas em muitas delas. Quanto mais aprendo, mais crítica me torno. Interesso-memuito pelos trabalhos sobre o cérebro, mas muitas das pesquisas em neurociência usam um modelo cartesiano dualista de mente e corpo sem nem se dar conta disso. Colocam traços psicológicos no topo e, então, neurônios, hormônios e neuroquímicos abaixo. A psique flutua sobre apoios ou correlatos neurais como se os dois, psique e neurônios, pudessem ser separados. O cientista traça um paralelo entre a raiva e uma região no cérebro –o sistema límbico, digamos. Issoé filosoficamente ingênuo. Não é uma imagem útil. Contudo, encontrar um bom modelo teórico para o funcionamento cérebro-menteé extremamente difícil. Sustento uma visão monista, encarnada da mente. 

Em relação a isso, você se referiu à nossa era como “neurobiológica”.

Sim, agora tudo tem um “neuro” na frente, pelo menos nos Estados Unidos. Neuroeconomia, neurofilosofia, neurotudo. Esta é uma era do cérebro porque muita informação nova foi produzida. As pesquisas explodiram.

Talvez pudéssemos nos referir ao século XX como a era do “inconsciente”? Porque… será que vivemos numa época em que o inconsciente freudiano –que é ao mesmo tempo dinâmico, sexual, reprimido, conectado à linguagem, antissocial– parece esvanecido? Não acha? 

Bem, isso é tãointeressante. Seria necessário procurar muito, hoje em dia, para encontrar um cientista ou um filósofo que não acredite no inconsciente. Issoé algo notável. E como o que a ciência entende por um inconsciente cognitivo se relaciona com o inconsciente freudiano? Bem, há certos cientistas, Mark Solms, Georg Nortoff e Karl Friston, por exemplo, que usaram o modelo freudiano de mente e o aplicaram à neurobiologia –o que nós sabemos sobre o cérebro hoje. A fantasia de Freud no Projetoera unir a realidade fisiológica dos neurônios e a psique. Ele abandonou essaideia, mas alguns acreditam que sua esperança inicial possa, agora, ser realizada. Marc Solms deu início à neuropsicanálise. O desejo de Friston é juntar mente e cérebro num modelo econômico como o de Freud. Outro cientista, o falecido Karl Pribran, nascido em Viena, amouProjeto. Ele o ensinou nos anos 60 como sendo sua teoria, e todos ficaram entusiasmados com as ideias. Até que ele contou à sua plateia de neurocientistas que se tratava de uma teoria de Freud, e não sua. Todos ficaram espantados. Ele dizia: “Não, de forma nenhuma. Eu acabo de ensinar a vocês o Projeto”. Pribran argumentou que, pelo fato de os conceitos de Freud terem nomes diferentes –Freud não usou a terminologia neurológica–, os cientistas os consideravam estranhos. Eu acho que a questão é mais ampla. Acho que Freud tornou-se uma daquelas figuras cujas ideias eram vistas como casos de tudo ou nada. Por quecom outros pensadores as pessoas têm permissão para tomar um conceito aqui ou ali? Por exemplo, Hegel. Pense em quão importante Hegel foi para a filosofia. Mas ninguém imagina que, para ler Hegel, é necessário acreditar que o Império Prussiano fosse a síntese última da dialética. Rejeitar essa ideia não significa rejeitar as ideias de Hegel, sobretudo sua teoria sobre a autoconsciência, por exemplo, que ainda é importante. Mas com Freud foi diferente. Se existisse um único pensamento que fosse descoberto como não verdadeiro, ele tinha falhado completamente como pensador. Eu não entendo tal raciocínio. O próprio Freud escreveu repetidas vezes que suas ideias provavelmente seriam revistas por conhecimentos futuros. Parte do problema pode ser devido ao fato de que a psicanálise tem sido ferozmente dogmática em seus enquadres desde o início. Havia muitas facções. Pense em Adler. Pense nos “analistas selvagens”. Imagine Anna Freud e Melanie Klein confrontando-se em Londres. 

…Houve uma revitalização da psicanálise nas ciências, e não acho que isso seja algo ruim. Acho que o que não se deseja é que a neurociência engula a psicanálise. Mas pode-se considerar a mente sob dois pontos de vista: primeira pessoa e terceira pessoa. É nisso que eu acredito: a experiência subjetiva do cérebro-mente –ou o que quer que esteja em nossos crânios– é irredutível. Em outras palavras: não se pode reduzir minha experiência –ou a sua experiência– de consciência (ou inconsciência) para um ponto de vista de terceira pessoa, por mais preciso que possa ser. Isso não significa que neurociências e psicanálise não possam dialogar. Elas podem. Freud teria adorado poder se envolver com a neurociência contemporânea. Ele era um neurologista, afinal. Faz sentido? …Estive remoendo à exaustão essa questão filosófica, mas acho que não se pode reduzir a experiência subjetiva aos neurônios. Posto de uma maneira simples, não funciona.  

Você afirmou que hoje em dia ninguém nega a existência do inconsciente. Mesmo dentro da psicanálise, a conceituação desse conceito fundamental varia bastante. E, fora dela, em outras correntes terapêuticas –assim como no campo cultural–, a ideia de um inconsciente rico em seus efeitos, sexual e conflitivo –digamos mesmo subversivo– não é comumente encontrada… ou é?

Isso é verdade. Na ciência cognitiva hoje, ninguém negaria processos inconscientes. Isso posto, a natureza desse inconsciente é tema de debate. No entanto, a teoria computacional da mente –que esteve em alta na ciência cognitiva desde a década de 50– encontra-se provavelmente em seus estertores finais. A mente não é um computador digital lógico, e cada vez mais cientistas estão se voltando para outro paradigma –não estritamente psicanalítico, mas que reconheça a importância das sensações e emoções.

Pode ser que eu tenha uma inclinação para a síntese porque eu adoro juntar ideias de muitas disciplinas que raramente interagem. Isso satisfaz meu desejo de brincar e continuar brincando, mas também de unir ideias de modos improváveis. Certamente isso está relacionado a personalidade e caráter: unificar me dá mais prazer que dividir. 

Algumas décadas atrás, uma série de artigos de Janet Malcolm foi publicada na New Yorker. Nela, foi descrito o retrato típico de uma prática psicanalítica ortodoxa. Próximo tanto a certos estereótipos quanto ao que pode ser visto em alguns dos filmes de Woody Allen. Essa imagem de analistas rígidos e neutros, principalmente médicos, alguns com sotaque europeu, mudou? Como você vê a prática analítica hoje em Nova York?

Acho que a questão do sotaque vienense diminuiu porque muitos dos exilados europeus que vieram a Nova York na década de 30 já morreram. Então acho que o estereótipo do velho de barba desvaneceu-se um pouco. Há menos lacanianos em Nova York do que em Paris e Buenos Aires, por exemplo, e uma variedade de programas psicanalíticos diferentes. No entanto, a instituição de elite aqui continua sendo a Sociedade Psicanalítica de Nova York. 

Mas as pessoas aqui vão ao analista frequentemente, como costumava ser? Era um hábito muito popular…

Creio que há muito menos pacientes de cinco sessões semanais e que deitam no divã do que costumava haver. Se perguntarmos a analistas em Nova York, eles dirão que têm alguns pacientes verdadeiramente analíticos, à moda antiga, mas normalmente um número pequeno –dois ou três. 

O que é um paciente verdadeiramente analítico para você? Na sua opinião?

Fui uma paciente de psicoterapia baseada em psicanálise por seis anos. Eu tenho um analista.

Você foi uma “paciente verdadeiramente analítica” por seis anos?

Fui uma paciente por seis anos, sim, mas não deitando no divã. Ainda assim, devo ser tão “verdadeira” quanto qualquer outro paciente. Outro dia disse ao meu analista: “Sabe, estou começando a ver o arco do processo, um fim. Sei que vai acabar em algum ponto”. O que quero dizer é que a ideia clássica de deitar no divã cinco vezes por semana e conversar com o seu analista acontece muito menos do que costumava acontecer. Muitas pessoas que têm um analista –alguém treinado em psicanálise– são como eu. Vão duas ou três vezes por semana a uma psicoterapia baseada em psicanálise.

Que tipo de motivos há, em sua opinião, para essa mudança… não tanta gente indo…

Cinco dias na semana?

Sim…

Bem, isso é uma velha história na psicanálise. Parte disso é dinheiro. Fazer análise é caro, mesmo se em Nova York muitos analistas tenham escalas graduais, dependendo das possibilidades financeiras dos seus pacientes. É também uma questão de tempo e da ideia atual de que as respostas psicofarmacológicas são tão boas quanto a conversa. Eu acho que isso não é verdade. Os antidepressivos provavelmente foram tão bem sucedidos nos anos 90 porque o efeito placebo era bem maior na época. Houve vários estudos mostrando que a diferença entre antidepressivos e placebo hoje é quase inexistente. Sou fascinada pelo efeito placebo. O que significa, por exemplo –o que agora se sabe, é por isso que estou interessada em neurobiologia–, que um tratamento placebo dado a pacientes com Parkinson causa liberação de dopamina no cérebro? Pense nisso. Ou que, se você recebe uma pílula de açúcar e espera que ela vá ajudar, opioides endógenos são liberados no seu cérebro e fazem você se sentir melhor? Além disso, o contato com o médico é extremamente importante para o efeito. Se um médico lhe entregaruma pílula de açúcar bruscamente, nem de perto funcionará tão bem quanto se ele se sentarcom você e conversarsobre a pílula de açúcar de uma forma reconfortante. Há modos diferentes de olhar para o fenômeno. Suspeito que se trate de um fenômeno intersubjetivo relacionado a uma ligação inicial. Existem, certamente, tratamentos farmacológicos que são benéficos. Não sou antifarmacologia. Mas placebo é um exemplo surpreendente de como o sistema nervoso pode ajudar a si mesmo por meio do contato com outra pessoa.

Outra figura intelectual importante –também uma mulher nova-iorquina–, Susan Sontag, chamou nossa atenção para alguns aspectos estéticos da sessão analítica. Ela também disse que psicanálise era uma forma de arte não reconhecida como tal. O que você pensa sobre isso? Poderia a psicanálise estar ao menos à mesma distância da arte e da ciência?

Acontece que eu acho que o trabalho real de fazer arte ou ciência não é nem de perto tão diferente quanto as pessoas gostam de pensar. Fazer boa ciência também envolve intuição, imaginação e emoção –essesaspectos não reconhecidos da ciência são essenciais para ela. Mas psicanálise é uma arte no sentido em que analistas que são bons naquilo que fazem são capazes de visitar lugares profundamente inconscientes dentro de si mesmos, muito difíceis de por em palavras. E fazer arte também se origina no inconsciente. A menos que um analista possa jogar com essas forças inconscientes, não será especialista no que faz.

Não entendo porque minha própria análise funciona… Não sei dizer o que aconteceu. Tem um lindo artigo que George Perec escreveu sobre sua própria análise, chamado “A cena de um estratagema”. Ele estava em análise com J.-B. Pontalis e não revela nada sobre o conteúdo de sua análise. Ele traça seu arco. Conversas sem fim, conversas consigo mesmo, sem fim, sem fim, chatas, chatas, chatas, chatas. E então ele diz –que é exatamente o que eu senti– que não entende como aconteceu, mas, de repente, como ele diz, encontra sua voz e encontra sua habilidade de escrever. E o mais estranho:a experiência disso é como a mudança acontece, mas não se pode traçar o curso dela. O artigo de Perec é uma das mais maravilhosas peças já escritas sobre análise. E então vem Hilda Doolittle, H.D., a poetisa. Ela foi paciente de Freud e escreveu um pequeno livro adorável chamado Tributo a Freud.Ela também conta muito pouco sobre sua vida. Nenhum deles detalha o conteúdo de suas análises. Eles falam sobre o movimento e a forma. Se você pudesse rastrear o curso de uma análise, haveria uma certa qualidade formal, uma forma. A diferença entre fazer arte –escrever um romance ou arte visual– e fazer uma análise é que numa análise existe um outro real. Toda arte é feita paraum outro. É sempre dialogal, mas o outro é imaginário. No espaço analítico, há um outro real que pode intervir, comentar, interpretar. Isso não é verdade para o romance. 

Nessa direção, há um ponto sobre o qual você escreveu… psicanalistas aparecem frequentemente no seu trabalho..

Sim, estão em toda parte.

Mas você diz uma coisa –que certamente é verdade: que eles raramente conversam sobre si mesmos como sujeitos, eles aparecem como objetos… Um “outro real”, sim, mas um outro real que aparece não como um sujeito, mas como um objeto. 

Você poderia dizer que o analista é também uma criatura imaginária. Pelo fato de a natureza da transferência incluir uma espécie de projeção no analista, a relação muda. Um dia ele é sua mãe, outro dia, seu pai, irmã, irmão ou alguma outra pessoa íntima. No entanto, a razão pela qual uma pessoa pode mudar por meio da análise é que existe um “outro real” que intervém em momentos cruciais ou talvez intervenha uma vez, e outra, e mais outra, e chega um momento em que a interpretação a atinge. Mesmo se você ouviu um insightmilhares de vezes antes, de repente as palavras fazem sentido. Esse sentido tem que ser tanto corporal quanto semântico. Um sentido emocional, físico, tem que estar presente. Todos podemos intelectualizar. Sou muito boa nisso. Você pega uma ideia, vira-a de um lado para o outro e a vê de diferentes ângulos. Mas uma mudança real tem uma qualidade profundamente emocional, física. É incrível. 

A arte do romance é a arte do particular. É a arte da experiência humana específica e de como essa experiência é compreendida. Isso, por si só, une a forma à psicanálise. Embora a análise seja guiada teoricamente, é sempre sobre a história de um indivíduo. Nesse sentido, é romanesca. Eu não acho que a psicanálise seja sobre trazer à tona uma verdade objetiva ou encontrar a história real. Isso para mim é um absurdo. A natureza da memória simplesmente não comporta essa possibilidade. Mesmo que você tivesse uma equipe de filmagem contigo todos os dias da sua vida –o que ninguém tem–, poderia conhecer “os fatos”, mas estaria numa perspectiva errada. Estaria olhando para a sua vida do ponto de vista de uma terceira pessoa. Tanto romancistas quanto psicanalistas têm uma profunda preocupação com as narrativas em primeira pessoa de seres humanos.

Um dos seus personagens fala sobre o modo como todo o mundo reescreve sua própria vida por meio de uma análise e o modo como a realidade de cada um quase não se distingue da ficção. Por favor, conte-nos mais sobre a relação entre realidade e ficção e as máscaras como um modo de explorar a verdade no seu último romance. 

Sim… bem, quanto mais eu penso sobre isso, mais difícil fica extrair uma chamada “história real” da história de qualquer pessoa. Não estou dizendo que não existe memória ou que somos completamente vazios em termos de passado. Acredito que memória e imaginação são uma faculdade, não duas. As imagens mentais que temos na memória e as imagens mentais que fantasiamos –como sobre o que vai acontecer na próxima quinta-feira– não são de tipos diferentes. E acredito que essa faculdade unificada de memória-imaginação é sobre o que nos baseamos para fazer arte. A história com a qual você chega em análise costuma ser uma que foi cristalizada num mito. É como uma carapaça ou concha. A história com a qual você chega foi concebida inconscientemente para encobrir a dor. Ela permite que sintomas floresçam porque é uma história defensiva. A tarefa da análise não é entender a história “direito” ou encontrar “a verdadeira história”, e sim encontrar a narrativa que é mais emocionalmente verdadeira para o paciente. Assim, é a verdade emocional que estamos procurando, não detalhes particulares de uma narrativa. É por isso que Perec e H.D. escreveram tão bem sobre o processo. Eles não se debruçaram sobre as particularidades: “Ah, e então o analista disse que… “, “…e então eu de repente entendi esse fato sobre minha mãe, pai ou quem quer que seja…”. Há um processo de desvinculação emocional que se torna libertação. E, quando as pessoas deixam uma análise, depois de anos de “elaboração”, estão mais livres.

No seu último romance, O mundo ardente, ficção e realidade estão em foco. 

Ah, sim, as máscaras, não falamos sobre elas…

E máscaras, sim. O falso e a máscara permitem que as pessoas falem a verdade.

Sim. Eu acho que O mundo ardenteé uma parábola do romance como forma de arte. O que acontece quando você escreve um romance? Você coloca personas ou máscaras, que são personagens, e através dessas personas você descobre aspectos do selfque você nunca teria descoberto se não tivesse se tornado essas outras pessoas. Uma das perguntas que também me fiz é: qual a diferença entre escrever um romance –especialmente um romance como o meu último– e ter distúrbio de múltiplas personalidades? Quando você escreve como se fosse outros, você está representando – como atores representam papéis. Eu observo isso no livro que estou terminando agora. Quando um ator representa um papel muito diferente de si mesmo, há mudanças fisiológicas mensuráveis? Por exemplo, ritmo cardíaco alterado, padrões diferentes de resposta galvânica da pele. Você poderia fazer todo tipo de testes, EEGs… Aposto que se encontrariam alterações. A diferença é que as pobres pessoas com personalidades múltiplas não estão no comando de suas personas. Um romancista pode se retirar de seus personagens sem ser tomado por eles. Chamo isso de “moldura estética”, um santuário protetor oferecido pela forma. Ela torna possível ir a lugares perigosos, viajar a terrenos psiquicamente perigosos porque você esta a salvo dentro da moldura do livro ou da moldura da peça, onde você pode deixar sua imaginação correr livre e fazer excursões perigosas para dentro de outros “selves”.

Como pode ser inferido de suas histórias e ensaios, você tem um profundo e genuíno interesse pela psicanálise –e até mesmo um engajamento único para estudá-la. Você poderia nos falar mais sobre seu desejo anterior –tendo um recente PhD– de se tornar analista?

Pensei que daria uma boa analista, mas não podia pagar a formação. Na época, o Instituto Psicanalítico de Nova York admitia um ou dois candidatos não-médicos, o que não era bom sinal para mim na época. Uma parte de mim gostaria de ter tido o luxo de fazer a formação na época –no mínimo, porque teria conseguido fazer análise mais cedo. Nunca foi uma questão para mim não me tornar escritora e, em vez disso, me tornar analista. Decidi escrever quando tinha 13 anos e comecei a fazer isso imediatamente. O problema para mim era como escrever e ganhar a vida para poder comer e pagar aluguel.

Parece estranho, para nós, o fato de você estudar textos psicanalíticos, já que normalmente são os analistas que estudam textos ou trabalhos artísticos…

Sou fascinada, em geral, por esta questão: como uma pessoa se torna ou continua a se tornar quem ela é? Algumas correntes de psicologia científica –por exemplo, a psicologia evolucionista, que é baseada na teoria neodarwiniana evolucionista– não incluem a história do desenvolvimento individual. Ela, que é tão significativa na psicanálise, está ausente. A evolução ao longo dos milênios é importante, mas a história de uma pessoa não tem significância porque os neodarwinianos empregam um modelo estático de uma mente evoluída, mas, principalmente, fixa. Se a mente não é dinâmica, mas meramente uma entidade geneticamente determinada, a questão se torna calcular “hereditariedade x ambiente”. Se você abre mão do modelo desenvolvimentista, de uma narrativa da realidade subjetiva, então eu acho que se faz uma injustiça fundamental com a natureza da experiência humana.

Algo permanece fora desse modelo: o sujeito. O sujeito inconsciente está fora…

Certamente… Acho que umas das razões pelas quais escrevi esse pequeno livro (The delusions of certainty) é que se trata, em parte, de um ataque à teoria computacional da mente, à ideia de que nossas mentes são computadores. Na verdade, essa ideia vem lá de Pitágoras, de números como verdade…

É pré-freudiana…

Bem, bem pré-freudiana… A ideia é que existe um território platônico eterno, uma realidade matemática que não é da mente humana –está lá fora, no universo mesmo. A mente e o pensamento tornam-se um sistema simbólico que pode ser destituído de todo significado e de todo contexto. A linguística chomskyana é fundada na ideia cartesiana –uma gramática abstrata generativa. Não acredito que é como a mente funciona. Não acredito que seja redutível à forma computacional digital, e é um erro supor que seja. Tem se tornado cada vez mais claro que o modelo é errado, porque seu uso em inteligência artificial –a tentativa de criar robôs como eu e você, com sentimentos, consciência e emoções– falhou. Na cultura popular existe a ideia de que os androides estão logo ali, na esquina. Bem, é espantoso quão longe eles estão da esquina. Como uma pessoa que trabalha em IA (inteligência artificial) disse: nós não chegamos perto nem de reproduzir os movimentos elegantes e as capacidades de uma formiga.

Não acho que fazer análise requeira muito conhecimento de neurobiologia. Uma grande parte do que acontece no encontro analítico não se presta facilmente à articulação. Sei que existem grandes analistas que nunca se importaram nem um pouco com o “cérebro”. “Como e por que ‘conversar e ponderar e intervenção’ criam mudanças no analisando?” e “o que exatamente é transferência?” não são questões fechadas, mas abertas. Quando terminei meu PhD, tinha lido muita literatura, filosofia, história e psicanálise. O que faltava em minha formação era o lado da biologia, da anatomia, então parti para corrigir isso. Quanto mais aprendo, mais crítica me torno. Existe uma ingenuidade filosófica generalizada entre cientistas. Mas também admiro o trabalho empírico, sou fascinada por dados e descobri que aprender a pensar de modo científico me proporcionou uma mente mais flexível e flutuante. Um dos problemas da neurociência é a frequente falta de um senso de desenvolvimento dinâmico do organismo e uma obsessão com a tecnologia de escaneamento do cérebro.

Muitos analistas foram médicos, mas certamente não todos. E Freud tomou uma posição determinada a respeito da questão, como sabemos. Não é que eu evite o rigor. Sou a favor do rigor. Mas, mais do que isso, sou alérgica ao dogma e tendo a achar pensamentos interessantes em muitas disciplinas. Um livro me leva ao próximo. Também leio contra mim mesma –quer dizer, leio livros aos quais me oponho por temperamento. Acho bom para mim. Aguça meus pensamentos, frequentemente me deixa desconfortável, mas também me transforma. Comecei a ver o mesmo problema de múltiplos pontos de vista.

Nós, analistas, apreciamos você como interlocutora. Entrevistamos você, convidamos você para congressos e publicamos suas ideias… Lá, a busca que você fez é direcionada, entre outras coisas, ao conhecimento para o qual a psicanálise pode contribuir. Nós aparecemos perguntando, e você, no lugar de quem sabe. Como você experimenta essa situação? Com alguma estranheza?

Quando apresento meu trabalho à comunidade psicanalítica, eu o faço do ponto de vista de uma outsiderinteressada –uma artista e, agora, alguém que passou anos em terapia. O fato é que, apesar de minha reconhecida e extensa leitura em psicanálise e conhecimento a respeito do tema, não é nada claro para mim que meu conhecimento tenha tido muito a ver com a jornada que eu fiz em minha própria terapia. Essa foi minha própria caminhada dentro da nuvem do desconhecido com um guia hábil. Saí em um clima mais límpido. Estou melhor. Isso posso atestar.

É notável quão ampla é sua leitura psicanalítica: Freud, Bion, Winnicott, Lacan… Como e de que ponto de vista você lê autores psicanalíticos? Você lê os textos como se fossem ensaios científicos ou em uma busca pessoal por sentido? Ou como se estivesse lendo ficção –no sentido que Borges talvez tenha dado, quando equiparou a psicanálise a um ramo da literatura fantástica.

Leio para descobrir, como disse antes, “por que nos tornamos quem somos?” ou “por que estamos continuamente nos tornando quem somos?” –como seres humanos, digo. Nunca alcanço o fim dessa questão, mas posso dizer que acho a busca vivificante, excitante, frequentemente alegre. Nenhuma teoria pode sustentar toda a verdade e complexidade do que significa ser humano. A psicanálise aproxima-se mais do que muitas disciplinas porque ousa considerar muito do que somos e quanto disso nos é ocultado.

Em que medida a psicanálise, como você escreveu, muda nossa maneira de concebermos a nós mesmos?

O maior legado de Freud pode ser o valor inconteste de duas pessoas sentarem em uma sala onde uma delas ouve atentamente a outra, algumas vezes, por alguns anos, e o surpreendente fato de que, desses anos de conversa e escuta, o paciente pode sair da sala finalmente se sentindo melhor –sentindo-se mais livre, sentindo-se mais corajoso e sábio do que quando começou.

Como você vê a psicanálise no presente e como você a imagina no futuro –o lugar que ocupará na cultura no futuro?

Deixe-me colocar desta  maneira: minha esperança é de que a psicanálise novamente será parte do que imagino como uma reforma da psiquiatria. Em outras palavras, a psicanálise tem muito a oferecer ao que se tornou, ao menos nos Estados Unidos, uma forma de tratamento psiquiátrico muito biologicamente orientado, que tem ainda que definir o que quer dizer com “psique” e “soma”. Pacientes são coleções de sintomas dispersos, não seres com passado. A psicanálise –por incluir a ideia de narrativa, o desenvolvimento da narrativa do paciente, por se interessar pela primeira infância e pelo seu desenvolvimento, e suas relações com a maturidade– pode ampliar o que se tornou uma abordagem psiquiátrica estreita. Além disso, acho que as pessoas na psiquiatria estão ficando fartas de modelos estáticos da mente, do cérebro e de maneiras primitivas de pensar o tratamento. A psicanálise pode ser parte do ressurgimento de um modelo dinâmico de mente-cérebro.

Ao falar de sua análise, Harry Burden refere-se a “essa estranha forma de intimidade”. Eu achei essa definição ao mesmo tempo vaga e precisa. O que você acha dessa estranha forma de intimidade em nossa contemporaneidade, em que algo relacionado à intimidade parece ter desaparecido? Todo mundo está exposto todos os dias.

Ah, sim, acho que é ruim. Eu me encontrei com uma jovem analista. Agora ela está em Nova York, mas por alguns anos estava trabalhando em Seattle, e ela disse que as pessoas fazem de tudo antes de finalmente procurar um analista. Andam de bicicleta, fazem jardinagem, massagem, acupuntura, o que tiver. Ela disse que a diferença entre os pacientes de Nova Yorke de Seattle era que os últimos, após estarem algum tempo com ela, diziam coisas como: “É tão incrível. Não tinha ideia de que apenas falando sobre isso e estando aqui com você, voltando regularmente, teria esse efeito tremendamente importante para mim”. A cultura tornou-se estúpida sobre a nossa necessidade essencial pelos outros –não do modo autoconsciente da internet, mas a genuína necessidade humana de diálogo. Na análise, segurança e confiança são da maior importância. Ninguém poderia conseguir uma cura terapêutica de algum tipo sem ter privacidade e segurança, sem ter essa estranha forma de intimidade. O paciente sabe muito pouco sobre o analista, mas sabe que está seguro e que por meio do processo está melhorando.

Você poderia falar um pouco mais da sua análise sem quebrar “essa intimidade”?

Sim, claro. Agora que estou nela com tudo, minha experiência é de que eu, na verdade, fui mudada. Continuo pensando sobre isso. Disse ao meu analista: “É tão extraordinário”. Freud estava certo sobre os padrões neuróticos. Uma vez que você se torna consciente de seus padrões neuróticos, você está em posição de agir sobre eles. Mas eu aindafico impressionada. Análise muda mesmoas pessoas. Mudou a mim. E eu sou imensamente grata, apesar de ter começado tarde –tinha cerca de 50 anos; agora tenho 60–, sinto que fui liberada. Não tenho certeza sobre se O mundo ardenteseria possível sem ela. Posso dizer isso.

Permaneci com o analista sobre o qual escrevo em The shaking woman[2]. Provou-se nada menos do que uma grande libertação. Também tenho um neurologista. Eu era e sou uma pessoa que necessita tanto de um analista quanto de um neurologista. Sempre terei um sistema nervoso sensível. Continuo a ter uma neuropatia –que tenho desde meus 30 anos– e enxaqueca, embora bem menos frequentemente do que quando era mais jovem. Não sou atormentada pelos tremores. É interessante: os tremores não foram centrais em minha terapia. E, embora possa parecer perverso, estou contente que tenha acontecido porque abriu uma avenida para escrever sobre um assunto que me interessou profundamente por muito tempo. Foi também o sintoma do tremor que finalmente me levou à análise.

Entrevista realizada por Mariano Horenstein em Nova York, em 14 de maio de 2015. Da pesquisa preliminar e dos posteriores ajustes, participaram Natalia Barrionuevo, Adriana Yankelevich, Natalia Mirza, Ana Maria Olagaray e Pablo Goldberg.


[1]           [1]“As ilusões da certeza”. 

[2]        “A mulher trêmula”.