Entrevista com Tute: “a arte de roçar o inconsciente”

Você se interessa pelos que desenham sem pensar…

Pelo menos, sem pensar demais. Aqueles que escolhem um caminho menos calculado, com mais acidentes. Gosto mais deles, têm uma linha mais sensível. Tenho mais empatia com essa linha do que com quem desenha com régua, tudo perfeitinho, e com esse desenho frio… e eficaz, porque tudo funciona, tudo é previsível. Gosto também, mas não me emociona. Caras como Oski, Sempé, Steinberg, com um desenho, podem arrebentar o seu coração, algo que não acontece com os da linha fria, apesar de que possa admirá-los. Alguns me deslumbram, mas não me emocionam, como costuma acontecer com a pintura quase fotográfica.

Hiper-realista, que tecnicamente é maravilhosa, mas não comove, não diz muito…

Que incrível! Como consegue fazer isso?! Não acredito que uma pessoa consiga esse nível de realismo…, e ao mesmo tempo, tchau, pronto, passou a surpresa e passou tudo, e não nos resta quase nada. Prefiro esses caras ou essas mulheres que chamam menos a atenção, mas que com um olhar, um traço, uma nota bem colocada, podem arrebentar a alma. E depois, do ponto de vista do que eu faço, das coisas que fui provando e dos caminhos que adotei, há o da linha impensada, usar a razão o menos possível e me deixar levar pelo inconsciente…, e isso estaria em plena associação com a psicanálise.

Com uma espécie de associação livre gráfica…

De repente aparece uma ideia, como ponta de lança, e a partir daí vou puxando o fio que tem, encontrando o fio dessa meada, e vou puxando para ver o que aparece, sem saber muito bem o que vai vir… 

Com a mão, desenhando? Pensando?

As duas coisas ao mesmo tempo. Associo isso com os desenhinhos que se fazia ao falar pelo telefone. Agora quase ninguém fala pelo telefone, mas em determinada época era comum que houvesse um bloco para anotar telefones ou nomes quando se falava por telefone fixo. E esses desenhos eram absolutamente inconscientes, porque você não estava pensando no que estava fazendo, estava concentrado na conversa e desenhando inconscientemente. Muitas vezes encontrei esses desenhos que tinham alguma associação com o que estava falando. Meu modo de trabalhar tem muito a ver com isso. Não há um caminho único, costumam aparecer com uma ideia como motor, e depois vou encontrando todo o resto, o inconsciente vai me ditando e então, já na metade da página, mais ou menos, começo a vislumbrar um final. Uma vez escutei Borges falar sobre como construía seus poemas e senti muita identificação.

Como os construía?

Era como uma ilha ‒falava do poema‒ e dizia que via claramente uma margem e imaginava qual era a outra, e tudo o que havia no meio construía com inteligência.

Esse processo vale tanto para construir uma página de uma tira como uma só vinheta?

Não. Estou falando das páginas. Onde há mais espaço, onde costumo contar uma história, onde há mais liberdade, ou posso contar uma história em centenas de quadrinhos, ou fazer um grande quadro, pode ser preto e branco, pode ser em cores, já usei manchas, papelão ondulado, me permiti tudo, e inclusive o não humor.

Como é o processo dos desenhos de quadro único?

O quadro funciona de outro jeito porque há um rascunho prévio da ideia, e depois sim, no papel faço a lápis o que foi passado à tinta, escaneio e aplico as cores no computador, é algo mais cuidado. As páginas, não; são inconscientes, e é disso que eu gosto. Há uma aposta, uma aposta no acidente, na potência da espontaneidade, do gestual. Há uma potência gestual que existe no rascunho e que se dilui, invariavelmente, quando você o formaliza em um papel elegante.

Inevitavelmente? Ou você tenta fazer com que algo desse fogo se mantenha?

Tento conservá-lo, mas boa parte desse fogo se apaga sempre, e se apaga mais se o papel for bom, e ainda mais se estão te olhando e filmando, há algo da espontaneidade do momento, do impensado. Por isso te dizia: há uma confiança cega nesse inconsciente que faz com que a linha passe por esse milímetro do papel, e não pelo que está ao lado, o que faz a grande diferença.

Essa confiança cega no inconsciente é espontânea ou adquirida?

Percebi que aí é onde me sinto confortável, que nesses desenhos sou muito mais eu do que na formalização posterior dessas ideias. É simples assim: um dia percebi que o que ficava na minha mesa e ninguém via era muito melhor do que o que eu estava publicando.

E o que você fez?

Deixei o original e, no lugar de enviar o original, enviei o rascunho como se fosse um original. E fiquei esperando, em qualquer momento me ligam para dizer: você se enganou.

Funcionou?

Funcionou. E a partir daí nunca mais mandei um original, meus originais são meus rascunhos.

Mas o processo chega até um suposto original –que você não manda‒ ou fica inconcluso?

Fica inconcluso. Meus originais são meus rascunhos, com as rasuras…

Como boa parte da melhor literatura, que também é inconclusa…

Inconclusa do ponto de vista do que deveria ser. Para mim estão concluídas, terminam aí, com essas rasuras, com essas buscas de caminho. Se tinha a ideia de dois finais, publicava dois finais. Fiz de tudo nas páginas, poemas, ilustrei canções, me despedi do meu pai por essa página, fiz o que quis. Um capricho total e com uma confiança cega nesse inconsciente que descreveria como alguém mais esperto, mais legal, que sempre está à minha frente. Assim. Um poeta descrevia a utopia e dizia que ela sempre estava alguns passos à frente dele e que, à medida que ele avançava, a utopia também avançava. Bom, algo parecido, só que às vezes você pode roçar o inconsciente.

Você confia no inconsciente…

Sim, como se entendesse que o inconsciente é melhor do que eu, do que o meu eu.  [Risos].

De onde vem o seu interesse pela psicanálise?

Aparece quando eu tinha dezessete, dezoito anos, quando começo a fazer análise.

Segundo dizia o seu pai[1]: é a forma mais cara de se deitar… [Risos].

Exatamente, é verdade, sim… E também uma forma cara de ser vaidoso, porque há algo de vaidade que está em jogo na psicanálise.

Por falarmos tanto de nós mesmos, é o que quer dizer?

Sim. Há uma piada excelente de um cartunista espanhol da minha geração, que é um cara no divã que diz, em um grande balão: “Eu, eu, eu, eu, eu, eu…”, o psicanalista atrás dele lhe diz: “Você, você, você…”. [Risos]. Na minha casa se falava de psicanálise, havia um olhar psicanalisado, tanto do meu pai como da minha mãe.

Por uma questão de época ou eles faziam análise?

Faziam análise. Na minha casa havia uma leitura psicanalisada da realidade. Meu pai me disse uma vez: “Você perdeu a chave de casa, qual porta não quer abrir?”… Imagine, eu tinha dezessete anos, o que esse cara está me falando? Perdi as chaves! Não havia nenhuma porta que eu não quisesse abrir. Mas escutei tanto esse tipo de coisa… Para mim a psicanálise era um idioma que se falava na minha casa e que eu dominava, não compreendia, então acho que comecei psicanálise mais por curiosidade…

Como quem aprende uma língua estrangeira…

Sim, fui aprender psicanálise como se fosse a um instituto para aprender uma língua.

E você foi bem nisso?

Fui bem. Claro que no caminho, para além da curiosidade que fez com que eu começasse uma terapia analítica, me encontrei com coisas para resolver, me encontrei falando de outras coisas, e a partir disso fui aprendendo esse “idioma”. Foi uma boa experiência, tive várias experiências com diferentes psicanalistas, ao longo de muitos anos. Minha primeira psicanalista, mais de dez anos. Depois, uma muito rápida, e depois, com minha atual psicanalista, cinco anos, uma coisa assim.

Já é quase um vício…

Sim. De tempos em tempos, paro, de vez em quando me dou alta, porque nunca me dão alta, eu me dou… Mas considero um espaço superinteressante.

É um espaço onde aparece o humor?

Aparece o humor, sim. Sim, aparece.

Do outro lado?

O humor é fundamental dos dois lados. Inclusive parece mais fundamental do outro lado do balcão, do lado do psicanalista.

Claro, é um recurso genial para a interpretação…

Às vezes não é preciso mais do que uma linha de humor, e nessa linha já está resumido um montão de coisas…

Sim, e além do mais alivia…

Alivia, sim, eu faço uma associação um pouco caprichosa, mas que para mim tem sentido, entre o humor, a poesia e a psicanálise. Para mim, há pontos em comum entre eles.

Não parece nada caprichosa, existe uma relação forte…

Direta, têm muitas coisas em comum. Primeiro, em uma terapia psicanalítica –e isso o psicanalista sabe ‒, tudo é metáfora, nada é o que a palavra nomeia, em uma primeira leitura, pelo menos. Toda palavra é metafórica, todo sonho é metáfora de outra coisa. Por trás das palavras que aparecem na linguagem que você vai estruturando, se escondem outras que é preciso ir descobrindo… Não se sabe se estou falando de psicanálise, de poesia ou de humor gráfico. O cartum joga exatamente com a mesma coisa, joga com os sentidos e com as palavras, com a musicalidade das palavras, com o lixo da palavra, com o resíduo do sentir. A poesia, a mesma coisa, e a psicanálise é a mesma coisa. A intervenção não é outra a não ser isso, um momento muito esperado que tem que ser oportuno, breve.

Com esse efeito como de destilação… Há um montão de palavras que decantam… Isso acontece comigo especialmente com seus quadros únicos, têm uma concisão poética incrível…

Exatamente. Você é obrigado a sintetizar; se não houver síntese, não funciona. O humor se dilui, ao ponto de deixar de existir. Quanto mais economia verbal você encontrar, e que o sentido e a associação de ideias confluam em um único quadro, mais potente será.

Mas há diferentes tipos de análise, diferentes tipos de humor e diferentes tipos de poesia… Às vezes, há analistas ou humoristas mais prosaicos que poéticos…

Sim, também há poetas prosaicos, mas são generalidades, há denominadores comuns: nas três atividades, você sacrifica coisas em prol de outras. O psicanalista trabalha, como dizíamos, com o lixo da palavra.

Sim, com os restos.

Os restos, e às vezes prefere dizer algo de um modo não belo, mas sim eficaz. São decisões do psicanalista no momento que tem que escolher como dizer o que tem para dizer, para dizer nessa intervenção, e acho ‒mas você é quem vai me dizer, porque você é psicanalista‒ que às vezes escolhe caminhos mais simpáticos e em outras menos simpáticos, às vezes mais belos, quanto à forma de expressar o que tem que dizer, e acho que aí está como que sacrificando, em função do que convém ao analisando, o que ele considera que o analisando necessita.

Nem sempre há tanto cálculo na intervenção, às vezes…

Às vezes é mais espontâneo…

Sim, e às vezes o efeito se mede a posteriori. Pelo que você dizia sobre o valor dos rascunhos, às vezes acontece a mesma coisa com a interpretação: há interpretações construídas, calculadas, pensadas, que, quando são ditas, não têm nenhum efeito, como uma piada ao ser explicada. E há outras coisas que você diz espontaneamente, sem pensar, e têm um efeito de interpretação enorme.

Claro.

Como com as piadas, quem escuta ou quem lê é quem define isso como uma interpretação ou como uma piada, porque, se ninguém rir, não foi uma piada.

Exatamente, apesar de ser espontâneo, ainda que você esteja nesse momento intervindo de um modo espontâneo, vai escolhendo as palavras com que vai expressar essa ideia que fluiu. Coisas que eu percebo da minha própria experiência de análise. Na poesia isso também acontece, e no desenho também; muitas vezes você sacrifica coisas para que funcione melhor, como o analista, para que a intervenção funcione. Não importa que seja bonita, não importa que seja engraçada, não importa que seja dura. O que mais importa, independentemente da forma, é que funcione.

A eficácia.

Sim, a eficácia. No desenho, acontece a mesma coisa: você pode sacrificar um lindo fundo que você gostaria de desenhar em prol de que o olho do leitor vá para lá, para o lugar onde você quer que vá, para que a ideia funcione melhor. E na poesia também. Talvez essa palavra seja mais bela, mas funciona melhor essa outra, por motivos diferentes, para que o poema funcione melhor, digamos, a mecânica do poema, seja por sonoridade, seja por musicalidade, por como acontece. E no desenho escolho as palavras por musicalidade, por eficácia, por economia, por síntese, tento desenhar somente o que tem um valor dramatúrgico dentro do desenho, que contribui com algo; se não contribuir com nada, que não apareça. E o mesmo com as palavras: se eu posso dizer com menos palavras, uso essas palavras. E, o que aprendi com a poesia, se essa palavra se conectar melhor com a anterior e com a posterior, coloco essa, porque há uma musicalidade, eu leio em voz alta, vejo se flui, se não tem freios. Quanto mais rápido você puder ler e quanto melhor soar, melhor vai chegar a mensagem. E comprovei isso, aprendi com o Negro Fontanarrosa[2], como ia montando, desconstruindo suas próprias piadas, brincando: aqui não havia nada, vamos ver como esse filho da puta chegou a essa síntese maravilhosa…

Você analisava assim as obras dos mestres?

Claro, brincava, fazia esses jogos. Eu imaginava como havia conseguido esse efeito desconstruindo-o, deve ter começado por aqui…, e depois vendo como Borges trabalhava os poemas e como riscava, e o que riscava, e o que escolhia, e por que ficava com determinada coisa. Você vai imaginando: por que ele ficou com essa palavra, e não com outra? E depois o que esses caras diziam sobre seus processos criativos. Nunca vou me esquecer de Borges, por exemplo, dizendo que uma boa metáfora nunca tem que chamar a atenção; é uma aula de poesia magistral. Tem razão, porque as metáforas pomposas te detêm, te distraem.

Como encher-se de adjetivos…

Claro, essa coisa vaidosa e grandiloquente, própria, inclusive, porque ele mesmo se queixava de si na juventude, reconhecia que havia sido vaidosamente barroco.

Pensava nessa assimilação entre o desenho, a poesia e a análise, que há um efeito de decantação. Se você calcular a quantidade de palavras ditas em uma temporada de análise, que em geral dura anos, e quando termina a análise o que fica são duas frases, o que fica para quem se analisou e para o analista também, existe um efeito de decantação muito forte…

Um efeito de decantação porque a gente fica margeando sentidos.

Mas essa espécie de recorte de sentido e essa escassez de palavras terminam sendo enormemente liberadoras… Com o humor acontece algo semelhante, não?

Sim, porque a primeira coisa que se deve dizer dessas três disciplinas é que são artísticas, as três.

Você pensa a psicanálise dentro do campo artístico?

Totalmente, para mim o psicanalista é um artista.

Vejamos, me conte…

O psicanalista fala com palavras, trabalha com sentidos, de um modo absolutamente poético, que não tem nada de matemático nem de científico. Para mim é um erro tentar inscrever a psicanálise dentro do cientificismo. É outra coisa, é uma arte, e por isso não funciona da mesma maneira. Um cara vai e se analisa com uma psicanalista, e, supondo que pudesse dizer exatamente a mesma coisa a outra pessoa, vai ter uma resposta diferente.

E, além disso, não diria a mesma coisa, porque a escuta determina o que essa pessoa vai dizer, como se escuta. Há um ponto ligado à figura do analista. E qual seria a obra, se o analista fosse um artista? O paciente? É difícil pensar isso assim…

O paciente, não. O paciente seria a tela, em todo caso. A obra é, digamos, o que fica entre o psicanalista e o paciente, isso que se constrói nessa relação com tudo o que há dentro dessa relação: essa é a obra de arte. O gol do psicanalista é íntimo, silencioso, esse momento feliz é costurado por você, eu o imagino, nada mais; como imagino esse momento feliz, isso você vai me dizer, como é para mim quando desenho, e alguma coisa se resolve depois de centenas de desenhos, encontro algo e faço um gol.

Mas é diferente, porque você constrói seu nome próprio, um nome próprio tem um peso a partir do seu desenho, cada desenho soma algo a essa espécie de caminho que você faz. O analista…, coincido com o que você diz, de que tem muito de artístico, mas o destino do analista é o esquecimento, ficar como uma espécie de resto…

Estou muito agradecido aos meus psicanalistas que me ajudaram em coisas importantes.

Mas em geral ‒ claro que há estilos diferentes ‒ os analistas com muito afã de protagonismo atrapalham o desenvolvimento de uma análise, e quando uma análise termina há algo que cai, o analista passou de uma figura sumamente importante durante muito tempo para a vida de alguém a ser como um resto, na maioria das vezes.

Você está em um ponto exato, porque o protagonismo do psicanalista é enorme durante uma terapia psicanalítica.

Claro, mas existe algo em que o analista ajuda, a que, quem se analisa se construa de algum modo, que se escreva ou que se desenhe…

Por isso te dizia que é mais íntimo o gol do analista. Ele o grita na mais absoluta solidão, quando já fechou a porta para o paciente; sabe que fez o gol porque calou fundo, porque chegou a mensagem, porque gerou esse pequeno movimento. Esse é o gol do analista.

Sim, algo aconteceu.

E isso o psicanalista sabe tanto quanto o paciente… Esse é o gol do analista. É íntimo, não se publica em lugar nenhum, ninguém o comemora.

Também não se pode contar…

E não se pode contar. Você “é Gardel”[3], porque a transferência, essa famosa relação entre psicanalista e paciente, é enorme, é em quem você deposita, em certo sentido, em quem você confia sua saúde mental realmente. É bom que caia no esquecimento, é o melhor que pode acontecer… e quer dizer que você foi bem.

É assim mesmo. Quando você entrevistava pessoas[4], você entrevistou gente interessante, experimentou algo desse lugar, daquele que escuta ou que dá espaço para ceder lugar ao que o outro tem para dizer…

Adoro esse lugar, não sei se desfrutei tanto dele na televisão, com câmeras, tudo é mais artificial, pelo menos para mim. Não me sinto na sala de estar da minha casa conversando com um amigo. Estou pensando em todos que estão atrás, se está saindo bem, preocupado com coisas demais para estar relaxado. Mas, sim, sempre tive uma escuta especial, sempre me interessou escutar o que o outro tem para dizer. Na verdade, o trabalho que faço tem muito a ver com isso. Há coisinhas, talvez, que em geral passam despercebidas, e são para elas que eu olho.

Os desenhos de sua autoria em relação com a análise, que são muito sutis…, de onde saem? Você lê psicanálise ou observa a cultura psiportenha, ou escuta coisas na sua própria análise? Não é um olhar ingênuo de nenhuma maneira… Seu olhar é ingênuo, mas ao mesmo tempo muito complexo…

Percebo quando vejo um cartum sobre psicanálise feito por pessoas que não se psicanalisam. Percebo por conta do olhar ingênuo em relação à psicanálise, porque a veem como através do buraquinho da fechadura.

Como um voyeur, digamos.

Claro, muito a partir do lado de fora. Eu vejo a psicanálise a partir do lado de dentro, apesar de não ser nem psicanalista nem alguém habituado a ela, nem li muito sobre o tema, mas a entendo, percebo que a entendo.

Nota-se.

Como entendo a poesia. Volto a Borges, que dizia… perguntam a ele sobre o que era a poesia, essa famosa pergunta quase impossível de responder. Bécquer dizia: “As pessoas me perguntam o que é poesia, e a poesia é você”, essas coisas românticas, e Borges dizia: “Não sei o que é poesia”, e se lembrava de Santo Agostinho, a quem perguntavam o que era o tempo, e dizia que ele não sabia o que era o tempo, mas podia reconhecê-lo.

Se me perguntam, não sei explicar, mas sei o que é…

Exato, a mesma coisa acontece com a poesia. “Não sei o que é a poesia, sei onde está”, dizia Borges.

A mesma coisa para a psicanálise…

Eu posso encontrá-la em uma pintura, posso encontrá-la em uma tarde, em um momento, em uma esquina, em um céu, inclusive em algum livro de poesia, dizia. [Risos]. E me acontece isso, não sei o que é a poesia, nem sequer sei construí-la, mas sei reconhecê-la, sei onde está, eu a entendo. E me acontece a mesma coisa com a psicanálise, eu a entendo. Não sei como um psicanalista funciona e ele pode me contar milhões de coisas e posso aprender muitíssimo, e me interessa, além do mais. Mas há algo do fazer humor com a psicanálise que sei como funciona. É como se conhecesse os mecanismos. Com a poesia, comigo acontece a mesma coisa. Sei como os negocinhos giram, digamos. [Ri].

É uma cena que se presta para o humor…

É uma cena maravilhosa, não deve haver cena que tenda mais ao humor do que a de uma terapia psicanalítica. Imagine uma salinha, uma caminha, em que você conta as suas coisas mais íntimas.

Como uma cena do confessionário também pode ter essa potência…

Sim, mas ainda mais ridículo. Acho que é menos ridículo acreditar em Deus.

[Risos]. É menos ridículo acreditar em Deus do que na psicanálise!

A psicanálise é tremenda. Te dá, além do mais, um olhar psicanalisado, mas o que é um olhar psicanalisado? É saber que nada é inocente, não há inocência em um desenho, não há inocência em nada, você perde a inocência.

Há algo que eu percebo em seus desenhos, é como que respiram assim, têm essa espécie de permeabilidade ao inconsciente, porque há muita gente que passa pela análise e transpira arrogância e uma espécie de pseudo-saber sobre si mesmo, e o que seus desenhos me inspiram é outra coisa, é como se você atravessasse essa experiência e saísse esburacado, muito mais permeável ao próprio inconsciente.

É que é assim. Considero que a psicanálise não traz uma cura: aqui está, cara, levo para mim, aqui está! Capturei! Por isso te dizia ao princípio que a maior aspiração é roçá-lo às vezes, mas o inconsciente está dez passos à frente. Em algum momento você pode sentir a sua respiração e tchau, você o perde novamente, e volta a estar dez passos atrás dele.

E possui uma função clínica?

Para mim a arte é sublimatória, assim se diz? Sinto que sublimo através dos meus desenhos.

Mas acontece de você trabalhar algo em uma sessão e de repente fazer um desenho que une coisas faladas por você em uma imagem gráfica e, além do mais, engraçada?

Em geral acontece ao revés porque, como te digo, o inconsciente está dez metros à frente, então eu começo a analisar coisas na minha análise pessoal que já foram publicadas.

Ou seja, você abre seus desenhos nas sessões…

Percebo depois, e sobretudo quando faço livros, vou reconhecendo… como não percebi? Já estava desenhando isso e não havia notado. Alguns, sim, são mais do momento, mas muitas vezes meu inconsciente já sabia por onde ia. É engraçado porque começam a ser publicados desenhos que eu fiz antes e que estão me anunciando que naquele momento isso é o que está me acontecendo. Começo a desenhar e a produzir para adiantar, para o que for; de repente, no mês seguinte me separo, mas já havia entregado [os desenhos], começam a sair na data que fui colocando em cada desenho e, na verdade, quando começam a ser publicados…

A separação se anunciava em seus desenhos…

A separação se anunciava. O inconsciente sabia disso, eu ainda não havia sido informado, então é como uma brincadeira que o inconsciente vem me fazer publicando-se assim, em meus desenhos, e jogando na minha cara: “Como você não sabia? Como não percebeu?”. A mesma coisa com a morte do meu pai, com a doença. Depois, você vai aprendendo isso, a ler um pouco, ou seja: “Amigo, vamos baixar um pouco a bola e ver o que estou dizendo a mim mesmo”.

Você escreve também?

Escrevo canções, em algum momento escrevi poesia.

Bom, as canções são uma forma de poesia…

Uma forma de poesia com uma música diferente. Gravei um disco com canções próprias. Chama-se Canciones dibujadas[5], cada canção tem um videoclipe desenhado.

Nessas duas linguagens, o desenho e a palavra, se você pudesse compará-las, o que o desenho permite que não é permitido pela palavra, e o que a palavra permite, mas que não é permitido pelo desenho?

Para mim é difícil dissociá-las, sempre acontece isso comigo. Inclusive quando falam da literatura desenhada, da novela gráfica, para mim a imagem e a palavra nasceram juntas. Deve ser porque mamei desde o início o humor gráfico, nasci vendo meu pai desenhar, e com balõezinhos cheios de palavras. Também me acontece ao contrário, quando vejo literatura ilustrada…

Você não gosta muito…

Não, para mim são dois livros. Intercalam-se desenhos desnecessários porque essa obra foi pensada para ser lida. De repente, tem um apoio gráfico, adoro, mas a vejo como dois livros. Você pega um livro clássico,Drácula, ilustrado por Scafatti: adoro, mas são dois livros. Outra coisa é quando o escritor pensa uma ideia para ser desenhada, ela se constrói de outra maneira; se não, é redundante. Então, o que acontece comigo com o humor gráfico? Para mim, estão associados. Não existe uma dissociação, não poderia te dizer que a letra me dá isso e o desenho me dá outra coisa, porque há vezes em que não uso palavras, nesse sentido o desenho me dá tudo nesse caso, e no caso seguinte dependo absolutamente da palavra, e é uma balbúrdia, um jogo de sentidos com apoio no texto que quase poderia prescindir do desenho. Para mim, letra e desenho vão juntos, inclusive os construo graficamente.

As palavras escritas também são como desenhos…

São como desenhos, e eu as uso como elemento gráfico, inclusive a assinatura para mim é isso. Na verdade, quando ela é retirada, nos livros, sinto que os desenhos caem, se desequilibram.

Você diz que mamou isso, é fácil ou não se dedicar à mesma coisa que fazia seu pai, que era uma instituição no cartunismo?

Para mim é a coisa mais fácil do mundo. Imagine que eu não te conto nada da história, te conto sobre o dia em que me sentei à mesa e pensei: “Terei a capacidade de ser cartunista?”, e que nessa mesma noite tive algo como quinze livros de ideias. Fiquei acordado até o dia amanhecer, trabalhando… Deveria ter dezesseis anos, encontrei o que sabia como se fazia.

O que você havia aprendido sem perceber…

Exatamente, não sabia que sabia, mas sabia.

Essa é uma boa definição da sua relação com o inconsciente, porque não haveria possibilidade de fazer humor nem poesia se não houvesse essa espécie de sensibilidade para o inconsciente…

Acho que sim, que ajuda. Eu tinha um montão de ideias, e então comecei a desenhar, e me deparei com o que era isso, isso era a minha história. Meu pai desenhava comigo e eu era um bebê, estava cochilando no moisés ao lado. E depois o via pensar a ideia. Agora estou prestes a fazer um livro – pela primeira vez faço autobiografia –, e pela primeira vez desenho a mim mesmo e desenho meu pai, e se chama Diario de un hijo[6]. É a relação com meu pai entremeada pelo desenho desde o meu nascimento até a sua morte. Estive anos. Mostro isso que ia te contar. [Tute me mostra, indicando desenhos na tela do seu computador]. Estou vendo como ele pensa as ideias: isso é o início de tudo, a primeira coisa que existe é uma ideia… Eu estou olhando o que ele pensa. Esse foi meu início de tudo, não é que via suas ideias, mas mais ou menos. Depois via como fazia seus rascunhos, depois via como fazia a lápis, como passava à tinta, íamos juntos ao jornal para entregar, eu via todo o processo e no dia seguinte via no jornal, já publicado.

Foi difícil para você pensar o projeto ou se decidir a fazê-lo?

Não, era uma coisa que me doía. Meu pai morreu em 2012. Em 2013 decidi fazer o livro. Enumerei todos os momentos que queria desenhar e nunca mais peguei nisso até 2017…

O tempo do luto foi esse.

Sim. De fato, o livro tem três leituras. Vai te interessar. O livro é um percurso que eu faço com o meu inconsciente. Todo o livro é meu inconsciente e eu conversando. Aparece desenhado. Entra pela porta: “Tranquilo, sou o seu inconsciente. Sente-se, prepare a chaleira, vamos tomar uns chimarrões”. Começo a falar com ele e se supõe que ele vem me socorrer nesse momento de luto. Então fazemos uma viagem juntos. Você sabe como é o inconsciente, não sabe nem da morte nem de nada, é livre, é um personagem com muita liberdade, me diz: “Vamos voar”. “Não é possível!” “Sim, é possível”, me diz o inconsciente. Os dois alçamos voo e vamos sobrevoando a cidade e lá fazemos o percurso, eu e meu inconsciente. E eu vou lhe contando, ao inconsciente, com algumas intervenções dele, como foi minha vida com meu pai, desde o meu nascimento até a sua morte. Nessa época eu não conseguia nem pegar o livro.

E você falava disso na sua análise?

Sim, e falava disso. Te disse, tem três registros: um sou eu e meu inconsciente atravessando o livro. O outro é o que vou contando ao inconsciente, que já aparece nesse registro: esse é o outro registro, aqui estou eu e esse é meu inconsciente como desenho aos domingos. Mas quando falo de mim, eu apareço, mas desenhado de forma mais séria, com traços mais humanoides, não esse personagem anódino. Quando falo do meu pai, aparece meu pai, eu apareço, na idade da qual estiver falando. E o terceiro registro é a minha análise. Eu e meu psicanalista, falando desse assunto. O psicanalista nunca diz nada.

O livro é um efeito da análise, de alguma forma.

Totalmente. Te digo, meu companheiro de aventuras é o meu inconsciente… Vai ser um livro nu e cru, dizia, porque eu estava com raiva e sei lá o quê, houve diversas etapas, diversos momentos da minha análise, mas apenas falando desse livro.

Mas esse tempo de processo de gestação do livro foi o tempo do luto pela morte do seu pai.

Sim. E de fato uma das minhas especulações na análise – dizia para o meu analista – , era que no dia em que terminasse o livro, ia terminar o luto também. Mas, como não podia pegá-lo [o livro], supunha que tinha que passar o luto para poder terminar o livro. E o terminei bem, gostei. Desfrutei, inclusive; desfrutei de desenhá-lo. Tive momentos de tristeza, de lembranças, claro, o tempo todo você está recordando a sua vida com o seu pai. Foi uma revisão da minha história.

Você sabe que Freud também escreveu um livro como efeito do luto pela morte do pai, A interpretação dos sonhos, que é o livro que aparece de forma quase simultânea com o livro sobre o chiste. Ambos são da mesma época, a descoberta do complexo de Édipo está associada com a morte do seu pai. O momento central na vida de um ser humano, especialmente em um homem, pensa Freud, é esse.

Sim, sim, foi um momento e tanto. Eu vejo isso com a minha mulher, que perdeu seu pai há muitíssimos anos. Era jovem, não tem nada a ver o que ela me relata ao ser mulher. E, depois, a história pessoal, meu pai não era só meu pai, mas era o artista que eu admirava, de quem todo o mundo gostava, uma referência, tinha um nível de identificação enorme, então tudo isso…

Mas há algo que é um indicador de um bom trabalho analítico, porque ter um pai que se destacou em algo pode ser uma coisa terrível para o filho. Porque construir um nome próprio para si na mesma atividade em que seu pai era uma referência…

Sim.

Pelo que vejo em seus desenhos, é como se você tivesse conseguido tirar algo do seu pai, e ao mesmo tempo dar a isso uma inflexão do seu próprio estilo. Você não é um clone do seu pai…

Não, de nenhum modo. Na verdade, ainda há pessoas que se surpreendem a cada vez que publico algo do meu pai. Elas me dizem: “Ah… Você é seu filho?”. Que loucura! Porque eu, quando comecei…, ninguém duvidava de que eu fosse seu filho. E hoje as pessoas…

Ninguém duvida, ao olhar seus desenhos, que você foi se soltando disso…

Fui me soltando muito disso.

Há evolução e diferenciação através do desenho. A análise teve alguma coisa a ver com isso?

Totalmente, por isso te digo que estou agradecido à minha primeira psicanalista que, coitada…, nunca gritamos juntos esse gol, eu a reconheci muito tempo depois, nesse sentido, porque trabalhamos muito a questão da identidade, foi muito mais importante do que eu havia percebido nesse momento. Mas me ajudou muito a me desprender do meu pai.

Mas, observe, seu pai tem várias vinhetas em relação à psicanálise; um livro, inclusive[7].

Meu pai tem grandes piadas com relação à psicanálise, e também ao entender bem como funciona.

Ao pescar algo da sua dinâmica, que não se aprende nos livros…

Há um do meu pai, maravilhoso, onde o psicanalista lhe diz: “O sr. fale tranquilo, relaxado, soltinho”, algo assim. Então, ao redor do divã, está cheio de armadilhas para ursos, redes, ciladas e coisas como se fossem de passarinho. O psicanalista lhe diz que fale tranquilo e relaxado, e está pescando o inconsciente com toda essa parafernália… Eu acho maravilhoso. Mas, sim, meu pai era um cartunista que fazia humor sobre a psicanálise desde o lado de dentro.

Para os leitores as piadas também têm um fator de alívio, como se fossem às vezes interpretações.

As piadas sãointerpretações.

Mas o que é simpático nessas interpretações é que agem sobre um montão de gente, com certeza o humor é diferente; a interpretação é algo particularizado em um consultório. Funcionam como se fossem uma metralhadora de interpretações…

Some-se a isso que um montão de gente está lendo, e que cada um tem sua interpretação, cada um… não acontece com você, com um paciente a quem você pode dizer a mesma coisa várias vezes, e ele vai escutar isso de forma diferente a cada vez que escutar?

Claro.

Como se fossem muitos, não? Não te responde sempre da mesma forma, algo despertou e isso fez com que escutasse de outro modo. O que eu mais gosto como desenhista… no começo eu me irritava quando havia tanta variedade de interpretações e entendia que estava dizendo uma única coisa, quando entendi que chegava a um montão de gente e que cada um utilizava…

Te irritava que os leitores lessem algo diferente do que você queria dizer? Você queria comandar a leitura do seu trabalho?

Exatamente, achava que não entendiam. E depois, não. Comecei a desfrutar disso, inclusive hoje do que mais gosto é dessa ambiguidade.

Que haja leituras diferentes… Uma interpretação é construída de modo quase igual ao que você está descrevendo.

Sim, porque dá mais espaço ao outro… Havia um cara que roubava poemas de Neruda para conquistar uma garota pela qual tinha se apaixonado. Então, quando conta a Neruda que roubou seus poemas, Neruda fica bravo e lhe diz: “Mas esses poemas são meus”, e [o outro] lhe retruca: “Como são seus? Os poemas são de quem os necessita”. Eu acho maravilhoso. E há algo disso que acontece com a interpretação, cada um a pega para o seu lado, para o que quer, para o que puder, e isso é interessantíssimo. Muito mais interessante do que a palavra unívoca.

Isso requer também que haja poucas palavras.

Com certeza. Além do mais, contar uma piada gráfica é matá-la um pouco.

E de onde sai o nome Tute?

Tute, de Matías, Matute, Tute. Já o tinha. O nome artístico era o meu pseudônimo, que arrastava da minha infância. Nessa época, havia o desenhinho animado de Don Gato y Matute, imagino que meio que vinha daí. Todos os Matías eram chamados de Matute, e eu fiquei como Tute.

Como o humor viaja?

Só te conto isto: quando me perguntavam a respeito da psicanálise em Praga, eu explicava que na Argentina – dizia isso para eles – há mais psicanalistas do que habitantes, e que a psicanálise chegou a um nível de popularidade que hoje em dia você fala de recalques ou de Édipo, e é como falar…

É como uma fala cotidiana…

Tornou-se muito popular, já é um código compartilhado pelas pessoas.

Veja só, o que você diz… porque você publica vinhetas com psicanalistas, publica para um grande público, em jornais de circulação massiva, e entende que do outro lado há alguém que as pesca…

Totalmente.

Isso me dá a sensação do que acontece com o humor judaico, que faz com que muitas pessoas riam, mas entre os judeus há algo como uma cumplicidade especial. Imagino que as vinhetas que têm a ver com a análise fazem rir a muitos, mas chega de outra maneira a quem passou por uma experiência analítica, não?

Com certeza, mas, além do mais, se você começar a pensar, todo o mundo ou é paciente ou é analista, ou deveria ser.

[Risos]. Alguma das duas coisas; às vezes, as duas coisas…

Alguns são as duas coisas. Na verdade, quando concebi o primeiro livro relacionado com a psicanálise, exclusivamente humor sobre o consultório, sobre o trabalho do consultório, achei uma chatice, faltava uma perna nesse livro, e era tudo o que nos acontece… e que depois levamos à análise. Então comecei a intercalar preocupações de índole existencial, e funcionava muito melhor. Tornou-se um mosaico verdadeiro da vida, do que é o trabalho de análise, das preocupações, reflexões, mudanças, da impossibilidade da mudança, da comunicação…

Gera um efeito de identificação muito forte. Algum livro seu que tenho foi um presente de um paciente…

Claro. Meu primeiro livro está no consultório de quem me analisa, na sua sala de espera. O segundo foi um presente meu, o primeiro já estava lá.

Humor em tempos de pandemia

Aconteceu de tudo desde que conversamos; uma pandemia, inclusive. É possível fazer humor sobre isso?

Faço humor sobre tudo o que me chega, me interessa, me perturba, me alegra, então claro que essa situação de pandemia não podia ficar de fora, e aos poucos isso foi se incorporando aos meus desenhos. A primeira coisa que me veio à cabeça foi que as paisagens externas passaram a ser todas paisagens internas, a gente começou a ver os batentes das portas. Eu faço poucos elementos gráficos no meu trabalho diário, tento fazer com que tenham um valor dramatúrgico, [o fato de] que algo não tenha desenho é porque [isso] narra algo, e meus desenhos começaram a ser interiores, casais dentro das suas casas ou pessoas solitárias, pessoas pensando sobre essa questão do vírus. Depois, quando começou a ser flexibilizado um pouquinho o confinamento obrigatório, voltei a colocar os personagens na rua, mas já com as máscaras, com tapa-bocas. Então, bom, sim, para um cartunista não deixa de ser um tema interessante para tratar do ponto de vista humorístico.

E é possível fazer humor com a tragédia?

Para mim, o humor é lícito sempre, em relação a qualquer assunto. Depois, há limites. O primeiro é aquele que te impõe o meio de comunicação no qual publica; ou seja, você publica em um meio com um determinado público, com determinadas características, e isso te impõe certos limites. E depois há os limites mais importantes, que são os próprios. Você faz humor com o que pode fazer humor, com o que você mesmo se permite fazer humor. Costumo desfrutar de humores que não me permitiria produzir, mas sim me permito desfrutar disso como leitor.

Lembro-me de um desenho do Rep quando destroçaram as Torres Gêmeas, era uma piada que pensei, me lembro disso quando li, achei genial, e ao mesmo tempo é algo que nunca poderia ter feito. Desfruto do humor negro, por exemplo, e é um estilo, faço um pouco de humor negro digerível no jornal La Nación, mas desfruto disso de modo mais cru em outros autores que não estão publicando em um meio de comunicação dessas características. Mas há limites em relação ao que te vem à cabeça ou não. Há ideias que você nunca vai ter por conta das suas próprias vivências, por suas próprias experiências, pela sua própria estrutura, digamos, ética, moral, sei lá.

Depois, os limites do meio…, isso é interessante porque, contra os seus limites, esses outros não podem influenciar muito. É como você produz no sentido das coisas que vêm à sua cabeça; mas, pelo contrário, com a questão dos meios é mais interessante o que acontece, os meios têm uma linha editorial que não deixa de ser um limite, e esse limite é interessante para que você brinque com isso ali. Sempre ilustro isso como em um campo de futebol, um espaço que já tem marcas, e você joga com liberdade, mas dentro dessas margens. Há regras. Agora, é interessante, porque você pode jogar coladinho à mureta e de vez em quando passar os pezinhos para o outro lado.

Pode assumir riscos…

Assumir riscos e experimentar, e talvez você veja que pôde ampliar esse campo, aumentá-lo um pouquinho. Outra coisa interessante que acontece é que, também no meu caso, ao trabalhar por tantos anos em um jornal cuja linha editorial não tem a ver comigo, isso me obrigou a desenvolver um exercício interessante da sutileza, que terminou moldando meu estilo, e isso me parece muito legal, porque acho que faz de uma limitação uma possibilidade. Também se estabelece um código com o leitor, que começa a entender essas piscadelas. Vê-se claramente, por exemplo, na época da ditadura na Argentina, quando os cartunistas tinham que se virar para produzir humor sob restrições severas.

Era preciso ser alusivo, não?

Era preciso ser alusivo, muito sutil, e estabelecer esse código com o leitor do qual te falo.

Alguma vez algum editor disse a você: “Não, esse cartum não sai”?

Sim, isso já aconteceu a todos. Você vai também… meu trabalho é artístico, mas também é um ofício, então você também vai entendendo claramente quais são os limites para não produzir um material que depois não vai ser publicado, e tem que trabalhar em dobro. Algumas vezes, sim, eu vejo isso como algo positivo, pelo contrário; no início, sim, me irritava e não gostava, depois encarei como algo positivo. De fato, os poucos desenhos que não foram publicados porque não me permitiram foram corretamente cortados, digamos, porque inclusive escapavam do que hoje posso chamar de meu estilo, para ser direto, por serem torpes.

O estilo é moldado graças a outra pessoa, em parte.

Sempre, sempre. Você se molda em virtude do resto, também, e assim acontece com os desenhos. Os desenhos são uma coisa bem viva, os desenhos que você faz na sua casa e que não são mostrados, não são publicados, não estão totalmente vivos, ganham vida quando entram em contato com o outro. E você tem esse feedback, tem essa ida e volta permanente, cotidiana. Observe como todos os personagens vão mutando, pense em qualquer personagem de quadrinhos, e não há um só que tenha permanecido igual. O que permanece igual é o que não se publica, o que não se exercita. O que entra em contato com o outro se modifica, vai mudando, vai mutando, porque vai mudando em função da maturação do próprio artista e do contato com o leitor.

Como funciona o seu humor, fora de fronteiras, há algo… Você publica também em outros países onde se falam outras línguas. Como funciona isso?

Funciona bem. Depende do lugar, da idiossincrasia, do estilo de humor da sociedade, mas em geral funciona bem. Em geral, faço um humor bem atemporal e suficientemente universal para poder ser distribuído em diferentes países sem grandes problemas.

E o humor ligado à psicanálise, uma das suas linhas editoriais, quase, como funciona quando atravessa fronteiras? Porque é uma prática universal, por um lado, mas também muito arraigada ao que é argentino, ao folclore nacional.

Olha só, agora estamos pensando em traduzir ao francês, a um mercado interessante para uma sociedade que consome psicanálise. Depois, talvez custe um pouco mais. Na Espanha alguns editores duvidavam sobre publicar material que tivesse relação com a psicanálise porque não é uma prática tão habitual como no nosso país. O mesmo no México, mas, bom, também me ligaram de revistas desses dois países para me entrevistar, por exemplo. Evidentemente, há um movimento psicanalítico; talvez não tenha o da Argentina, que é uma coisa insólita, única no mundo, inclusive em comparação com a França, há mais psicanalistas do que pacientes. [Risos].

Bom, o que acontece é que os psicanalistas são pacientes também, mas é algo que quase pede para ser contado pelos humoristas.

Com certeza temos a maior quantia de psicanalistas por metro quadrado.  [Ri].

Você, que conhece todos os tiques e as piscadelas e as senhas ligadas à psicanálise, por conta da sua história, porque você se analisa, porque mora em Buenos Aires, por mil coisas… você reconhece quando alguém se analisa, se analisou, sem precisar que te conte?

Acho que sim porque o que a psicanálise te dá, a prática da psicanálise, é um olhar sobre as coisas, um tipo de olhar sobre as coisas, e quando esse olhar não existe você percebe. E quando existe, também. A grande diferença ‒ e penso nisso agora ‒, em termos de mudanças da humanidade, é que há um antes e um depois da psicanálise, pelo menos no Ocidente. E é que depois da psicanálise ninguém mais é inocente, o olhar deixa de ser inocente. Não há desenhos inocentes, todos os desenhos estão entregando uma mensagem, estão contando algo. Nem sequer o desenho de uma criança é inocente, sempre há uma carga por trás das linhas do desenho, algo está transmitindo, um sentimento, um pensamento.

Você evidentemente não participa desse velho mito de que muitos artistas não se analisavam porque temiam que a análise acabasse com a sua criatividade. É evidente que não é assim, não?

Pelo contrário, te diria que o que guia a minha mão é o inconsciente, muito mais do que a consciência. Meu motor é o inconsciente, e aprendi a confiar nele, confio cegamente que o inconsciente vai me deixar em portos interessantes. Pode ser que eu tenha uma ponta de ideia e tudo o que vai aparecendo é uma livre associação, muito parecida nesse sentido ao trabalho do divã. Aprendi a confiar nessa força que todos temos, isso que chamamos de inconsciente, que nos faz tropeçar, mas que sempre está dois passos à nossa frente, é o que guia.

Converter a lágrima em outra coisa

Comprei o livro de que você me falou quando conversamos. Nesse momento, você o imaginava, mas ainda não existia Diario de un hijo. E aí há algo interessante para nós, para mim, pelo menos, e é o modo de fazer os desenhos com rasuras, longe de qualquer ideia de capricho, autoconsciência, unicidade, as rasuras fazendo parte da questão, e outra coisa, você aparece como se estivesse dividido em dois, você e o seu inconsciente, como dois personagens…

Claro, sim, o livro começa dessa maneira, de fato… o inconsciente batendo na minha porta, apresentando-se e me acompanhando em toda essa travessia pelo luto, pela perda do meu pai, e me acompanhando também em todo o relato da minha vida e da minha vida com o meu pai e com a minha família. Sim, foi a desculpa perfeita, no momento em que cheguei a isso, pronto, é o inconsciente, esse vai ser o meu Sancho Pança, perfeito inclusive para ir me corrigindo, para ir me mostrando coisas que não quero ver, indicando-me esquecimentos, todas as coisas que o inconsciente faz.

Eu fiquei muitíssimo emocionado. Tinha o livro na biblioteca e comecei a lê-lo antes de te ligar, e é realmente maravilhoso, ressoa.

Para mim foi muito lindo fazer esse livro. Muito difícil também, demorei muitos anos para poder encarar o projeto.

Porque o livro é o trabalho de luto…

É, pelo menos, o final do luto. Foi muito importante. Logo depois que meu pai morreu, eu pensei em fazê-lo, e depois demorei algo como cinco, seis anos para poder começar a desenhá-lo. Quando desenhei, foi gratificante.

Foi um efeito do seu luto um produto de tê-lo atravessado…

Sim. Além do mais, tive até sensações físicas, de desenhar conversas com meu pai e ter a sensação de que estava voltando a ter essas conversas, que estava revivendo isso, então foi forte, muito forte, e depois, tudo o que o livro produziu, todos os relatos das pessoas que o leram e o que aconteceu com cada uma delas com o luto dos seus pais ou de outros seres queridos. Foi muito intenso, nunca havia me acontecido com um livro algo tão intenso. E aí também descobri a outra grande capacidade de que suspeitava sobre a arte em geral, e sobre o desenho em particular.

O que você descobriu?

A capacidade de sublimação que a arte tem, essa capacidade de poder converter algo tão doloroso como a perda de um pai em um fato artístico. Convertê-lo em outra coisa. Veja, quando comecei a apresentar o livro, fui comer na casa do gordo, um amigo que tem uma taberna maravilhosa em San Telmo e onde se come muito bem, e conversando ‒na verdade, estávamos falando de como as coisas estavam difíceis e das dificuldades que ele tinha com o restaurante‒ me disse: “Bom! Não temos que nos queixar, é preciso converter a lágrima em outra coisa”. Fiz um recorte disso e guardei, achei a frase mais filosófica que escutei. E é exatamente o que eu sinto que fiz com esse livro, converter a lágrima em outra coisa.


[1]O grande cartunista argentino conhecido como Caloi, criador do personagem Clemente, e muito envolvido com a experiência psicanalítica também.

[2]Roberto Fontanarrosa, outro grande cartunista e escritor argentino.

[3]N. da T.: Expressão muito comum no Rio da Prata, que significa “ser o número um”.

[4]Tute apresentava um programa de entrevistas na televisão, Tutelandia.

[5]N. da T.: Canções desenhadas.

[6]N. da T.: Diário de um filho. Tute (2019). Diario de un hijo. Buenos Aires: Sudamericana.

[7]Caloi (1978). Clemente, Caloi y el psicoanálisis. Buenos Aires: Ediciones del Pájaro y el Cañón.