Margens
Excêntricos
No momento em que o primeiro número de Calibán via a luz, em outubro de 20121Refundava-se, então, a Revista Latino-Americana de Psicanálise, que aparecia bianualmente, há mais de 20 anos, com o nome agregado de Calibán e uma periodicidade, um formato e um estilo novos. Decidimos manter então a antiga numeração; nos apropriarmos calibânicamente do melhor da tradição, sem renunciar a um autêntico gesto de invenção., na mesma cidade acontecia a 30ª Bienal de São Paulo, talvez o evento de arte contemporânea mais importante da nossa região. Ali, entre 111 expoentes da vanguarda de meio mundo, uma das mostras do pavilhão desenhado por Niemeyer chamava a atenção dos visitantes –muitos deles, psicanalistas que escapávamos das sessões do Congresso Latino-Americano para bisbilhotar o que a arte tinha a nos dizer– e os deixava boquiabertos.
O espaço mais generoso da bienal estava destinado a alguém, desconhecido para mim, chamado Arthur Bispo do Rosário. Com um olhar retrospectivo, não foi casual que tenha dividido o mesmo céu paulista junto à revista que o leitor tem entre suas mãos, recém-nascida, porque Bispo –o artista cujo trabalho está na capa e nas 2ª e 3ª capas deste número de Calibán– é, ponto por ponto, uma encarnação do personagem da tragédia shakespeariana.
Esse artista das margens –referente inevitável da arte contemporânea brasileira– viveu mais de meio século em um hospício, diagnosticado como um esquizofrênico paranoide. Em sua cosmovisão delirante, acreditava-se chamado por Deus para reproduzir o universo em miniatura, inventariá-lo. E o fez com os materiais a que tinha acesso: resíduos, trastes velhos, restos de madeira, utensílios em desuso, plásticos, lixo, fios retirados de roupas, que depois reutilizava em bordados primorosos.
Ainda que inclassificável, não poderíamos pensar em um artista que encarnasse melhor a figura do marginal do que Bispo: negro, louco, pobre, latino-americano, artista. Inclusive assim –ou, justamente, por isso–, na sua reclusão, conseguiu codificar o mundo de modo inédito, e incita ainda hoje, com seu trabalho, à reflexão de muitos, em ambos lados do oceano que nos separa da Europa.
Bispo conseguiu sobreviver a costumes psiquiátricos mais ligados a eletrochoques, lobotomias ou coletes químicos do que à disciplina da escuta que nós, psicanalistas, praticamos diariamente. Depois conseguiu ser distinguido, escolhido, já não só pela Divindade em que acreditava, senão por outra, a Academia, que lhe reconheceu a autenticidade que só pode nascer de um absoluto desinteresse pelo reconhecimento, sem nunca ter se considerado, ele mesmo, um artista, sem haver proposto isso e inclusive sem ter sabido disso, porque já estava morto quando foi objeto de exposições na Bienal de Veneza ou em museus de Londres e de Paris, ou na Bienal de São Paulo, onde nos encontramos com a sua obra.
Colocar este número de Calibán sob a tutela desse artista das margens, fazer com que convivam nossos textos com suas imagens, é escolher um lado. Reconhecemos assim que o personagem de Bispo poderia ser a outra face –um heterônimo, inclusive– do personagem de Calibán. Por isso, sua obra pode interpelar os textos que nossa revista abriga já há sete números.
O reverso de Penélope
O certo é que Margens –o tema deste número– e a própria Calibán, enquanto publicação, funcionam como uma espécie de pleonasmo, pois o lugar de enunciação desta publicação é precisamente a margem, desde o seu primeiro número, e não por capricho, nem sequer por destino –apesar de que o lugar reservado para a América Latina na representação habitual do planisfério seja justamente o da margem inferior esquerda–, senão mais precisamente por escolha própria.
As margens –inclusive as margens das folhas abertas para as anotações do leitor– representam o lugar por onde o texto se oxigena, sua abertura ao estrangeiro do pensamento de quem lê, à fecundação pelo Outro que questiona o Próprio.
Pensamos Calibán das margens para o centro, e desse modo pensamos também a psicanálise, da periferia para o centro, a partir dos restos –da cultura, do eu, do capitalismo– que abundam nas margens.
Toda a obra de Bispo –como a escuta de um psicanalista– é efetuada sobre restos. Seu trabalho, de uma beleza devastadora, corporifica objetos que não são alheios aos objetos dos quais a psicanálise se ocupa. É se alimentando desses restos, desses detritos recusados tanto pela ciência como pelo senso comum, que a psicanálise pôde se inventar, e com eles sobrevive e cresce.
A tarefa do psicanalista é escutar pacientemente o relato alienado daquele que, deitado em seu divã, conta quem acredita ser, ignorando a alienação em que se funda e o custo sintomático que paga. Cada analista acompanha seu paciente a desfiar esse relato fio por fio para poder construir assim, frequentemente com os mesmos fios, um novo relato que permita uma liberdade subjetiva inédita. A essa estranha tarefa, inversa à de Penélope –que tece durante o dia para destecer à noite–, nós, analistas, nos dedicamos durante nossos dias de trabalho. Destecemos para tecer.
E não estamos longe –tanto os analistas como nossos analisandos– do que fazia Bispo, descosturando e destecendo o que lhe oferecia a miserável vida do hospício para, ali mesmo, com a mesma matéria, bordar maravilhas, já não com o fim de acatar delirantemente algum mandato, mas sim –em todo caso– o de nos desfazermos de qualquer um que constranja nossa liberdade de pensar.
Revisemos agora o modo em que, com os fios que dispúnhamos, pudemos costurar o número de Calibán que o leitor tem em mãos.
Nem sempre os editores estamos de acordo com o que se publica, e muito menos com o que fica de fora. Nem sempre escolhemos os fios com que devemos bordar. Os textos são submetidos a um processo de avaliação independente e parametrizada, em duplo cego, por revisores escolhidos pelas sociedades que compõem a Fepal. O mesmo acontece, ainda mais, com os trabalhos premiados, em cuja seleção não nos cabe ingerência nenhuma enquanto editores. Cada vez mais recebemos trabalhos para publicação, e é impossível publicar tudo o que nos chega: queremos agradecer aos autores pelo seu entusiasmo e compromisso com o intercâmbio de ideias, e convidá-los a continuar enviando suas propostas para as seções doutrinárias da revista.
Na seção Argumentos e em sua contraparte, Fora de Campo, publicamos artigos, escritos por analistas latino-americanos, que exploram as margens da nossa disciplina. Além disso, completamos neste número a publicação dos trabalhos premiados pela Fepal no último Congresso.
Em Vórtice, exploramos, através da contribuição de autores latino-americanos e europeus, um tema clássico, conceito fundamental e senha de pertencimento ao mundo psicanalítico, o do inconsciente. É somente uma proposta para retomar a discussão. E, se há algo que fica claro com esse debate clássico e, ao mesmo tempo, inacabado, é que nem todos falamos da mesma coisa quando falamos de inconsciente.
Em De Memória, traçamos um perfil de Isaías Melsohn e, em Clássica & Moderna, repassamos o pensamento e a figura de David Liberman.
Margens do texto, do corpo, do mundo
Há zonas da revista que são uma espécie de zonas erógenas do corpus psicanalítico: zonas de intercâmbio entre o próprio e o alheio, zonas de borda, zonas fecundas, fonte de um prazer tão intenso como a perplexidade para a qual abrem espaço.
O Dossiê é uma delas. O deste número explora outras margens, as do corpo, os orifícios em torno dos quais se organiza nosso erotismo. Os cinco sentidos e as zonas de borda, que lhes dão nome e sentido ao mesmo tempo, permitem que ofereçamos aos nossos leitores textos de autores reconhecidos que estão aqui para fecundar nosso pensamento analítico. Apesar de ser fundamentalmente uma disciplina da escuta, e inclusive inventora de uma modalidade inédita da escuta, toda a sensualidade está em jogo na psicanálise. Essa seção talvez nos permita –enquanto lemos– afinar nossa capacidade de palpar, gostar, cheirar, olhar o que escutamos e fazer com que assim apareçam sentidos inéditos no que nos contam.
O Estrangeiro é outra das seções de borda, marginais –e, por isso mesmo, centrais–, na fabricação de cada número da revista. Esse espaço é ocupado por um artigo inédito de Beatriz Sarlo: Episódios na margem.
A seção Cidades Invisíveis deste número é dedicada a Montevidéu, essa cidade situada em uma das margens do Rio da Prata e na estreita margem espacial –indica a autora do texto– deixada por países de outra escala, como Argentina e Brasil. Cidade capital com ar provinciano, cidade extremamente generosa com esta revista que hoje a retrata, não por acaso sede da federação a que pertencemos.
Em Extramuros, publicamos textos que nos lembram de que nossos consultórios não estão fora da cena do mundo, tanto como nos recordam os magníficos desenhos de Carlos Alonso que, com crueza e lucidez, ilustram os interiores da revista.
Periféricos
Sempre com demora, mas ao mesmo tempo com sagacidade para perseguir as pegadas deixadas pelos artistas, em Calibán nos encontramos à espera, na busca, do novo.
Temos certeza de que não só há dor nas margens –como reza um dos artigos que publicamos–, mas também um saber em formação, e nosso compromisso reside em sermos capazes de descobri-lo, alojá-lo, propiciá-lo, inclusive.
Como Bispo fez com seu mundo, tentamos recriar o mundo analítico, revisitar a tradição e, ao mesmo tempo, criar um espaço para que algo do novo, com sorte, possa ser publicado em nossas páginas. Não somos tão míopes para pensar que estamos à altura do nosso propósito, nem sempre tudo o que publicamos está à altura do que gostaríamos de publicar. Nós mesmos, a partir do nosso lugar de editores, exercemos nosso trabalho de forma imperfeita, enquanto aprendizes.
Aprendemos com Bispo, com a sua excentricidade. Mas excentricidade não é só extravagância: implica também que não haja centro ou, em todo caso, que haja diferentes centros. Esse também é o lugar da América Latina –pensava o mexicano Sergio Pitol–, um lugar excêntrico, assim como é o lugar do psicanalista, tanto em termos de estranheza como de estrangeiria e inclusive de marginalidade.
Nossa aposta é clara: construir um lugar onde algo original possa ser dito. Sem renegar o que aprendemos com os autores clássicos, com o que podem continuar a nos nutrir os países centrais –trate-se de Christopher Bollas ou Antonino Ferro, Guy Le Gauffey ou Julia Kristeva, entre tantos outros–, temos a firme suspeita –o que talvez não seja senão outra forma da esperança– de que qualquer renovação psicanalítica virá das margens, das margens em que outras disciplinas fertilizam nosso pensamento e o salvam das tentações autoeróticas tão afins à homeostase institucional. Mas também das margens do mundo, sejam elas ocidentais –como a que ocupam nossos países– ou orientais –nesse vasto território que começa na Europa do Leste e termina quem sabe onde, talvez nessa conjeturada quarta região da IPA–, ali onde a curva de desenvolvimento e expansão da psicanálise é proporcional ao frescor do seu (re)descobrimento.
Uma publicação como Calibán implica um produto a que, sempre, nos dá trabalho chegar e, quando o fazemos, experimentamos isso com uma estranha mistura de satisfeita liberação e tristeza. Mas, sobretudo, implica um processo, um caminho. Esse caminho estará justificado –só no a posteriori, a lógica temporal mais afim à psicanálise– se conseguimos receber, e inclusive estimular, ideias novas e férteis.
Em certa lógica de produção e difusão do conhecimento, o saber se difunde do centro para a periferia. Na periferia, costuma ser consumido o que foi produzido no centro. No entanto, um mundo caótico, órfão de certezas e de grandes relatos ordenadores –ainda dentro da comarca analítica– está cheio de oportunidades para o pensamento. Os grandes centros de irradiação de ideias já não são o que eram; acontece inclusive que é difícil identificar quais são os centros na contemporaneidade, e talvez não seria ousado imaginar um mundo de periferias sem centro.
Esse espaço prenhe de futuro talvez possa ser aproveitado por nós para propor ideias que se afastem das motherboards, potenciando nossa autonomia e nosso pensamento crítico, enquanto periféricos2Em informática, os periféricos ocupam o lugar do marginal. O termo se refere aos dispositivos que permitem a um computador –em cujo centro, a CPU (unidade central de processamento), reside a capacidade de processar a informação– introduzir dados, como um teclado, ou mostrá-los, como um monitor, ou armazená-los, como uma memória externa. O coração desse centro nervoso de informação é ocupado pelo que em inglês se conhece como motherboard, a placa central..
Cada número de Calibán é pensado de modo diferente, da periferia para o centro, inclusive em relação ao interior da equipe de editores. Por isso, uma seção inteira pode surgir de uma equipe paulista ou carioca ou montevideana. Na tarefa complexa de editar cada número de Calibán intervêm muitas pessoas, pequenos grupos que refletem paixões, interesses, até preconceitos, preferências e fobias diferentes. Processar essa diversidade, abrigá-la, potenciá-la em sua sinergia possível, é uma das tarefas que nos ocupa. Agradecer todo esse trabalho criativo e intenso, e nem sempre plenamente reconhecido, é minha reiterada e orgulhosa obrigação nestas páginas.
Mariano Horenstein
Editor-chefe – Calibán – RLP