Luis González Palma: “Ninguém sai ileso da infância”
Você fala muito sobre a imagem, mas ao pensar nela, vai além do seu registro próprio, o imaginário. Você também fala do peso simbólico da imagem, das suas raízes reais.
O real é a nossa morte e a morte de todas as formas de representação, de nossas ficções e realidades. Por essa razão, cada imagem tem um peso simbólico valioso e profundo, sempre esconde seu próprio mistério, nos interroga em silêncio, nos deixa desamparados diante de nossas interpretações parciais e limitadas. Precisamos pensar a imagem, pensar a nós mesmos através da imagem. Vemos a partir da nossa própria experiência e, nesse ato de enorme intimidade e solidão, configuramos nossa relação com o mundo. A informação sensível transmitida pela imagem está fora do seu espaço de representação, está em nosso imaginário. É a partir dele que a sentimos e somos afetados por ela. É assim que aprendemos a ver o que nos rodeia. Precisamos de imagens para nos dar sentido, acompanhar-nos, reconhecer-nos em algo que enche de forma ilusória nosso vazio existencial. A vida sempre procura o mesmo: deseja ver a morte com os olhos abertos.
Que outra sensorialidade se coloca em prática no olhar… escutar, cheirar, tocar, saborear o que se olha?
Há certa música, silêncios e ritmos associados a ela, há vários termos que são denominadores comuns: intensidades, espessuras, densidades, ecos, valores cromáticos. Penso que há uma espécie de olho visual ou olho sonoro. No estremecimento que você pode sentir frente a uma imagem, algo acontece em seu corpo e se sente na barriga, assim como ocorre com o som. Não só acariciamos com o olhar, rascamos o mundo com os olhos tentando resgatar algo da vertigem torrencial que implica viver. Queremos devorar a visualidade do mundo através do corpo todo, precisamos ver com as mãos, olhar com a língua, provar as cores, cheirar as texturas. O sentido do olhar é fundamental na elaboração da nossa subjetividade, precisamos de todos os nossos sentidos para construir nossa imagem visual do mundo, para criar, a partir das imagens que nos deleitam ou assustam, ficções sobre as quais nos apoiamos.
Tendemos a pensar no olhar de forma horizontal, como se no olhar tentássemos estabelecer ou realçar uma paridade. Ao mesmo tempo, existem outras maneiras de olhar: micro e macroscópicas, telescópicas, oblíquas, plongée e contra plongée[1], O olhar apenas se torna complexo como tema quando olhamos para além do evidente…
Para mim, é uma energia silenciosa que separa o espaço e o tempo, que divide e une ao mesmo tempo, que percorre um vazio para pousar em uma superfície para retornar com força inusitada ao interior dos nossos olhos, como um eco dos nossos próprios desejos. É o encontro e a despedida de nossas projeções e segredos. Olhar é encontrar algo que não se vê. É elaborar um luto constante porque algo de nós, não apenas nosso tempo, se perde enquanto contemplamos o mundo. Quando contemplamos uma imagem, evocamos o vazio que temos em nossos abismos. Nosso olhar nos revela frágeis e sedentos de sentido. Ver é permitir, dentro de muitas coisas, que a morte viva de outra forma em nós, é traduzir o fugaz em memória.
Sua maneira de olhar mudou ao longo dos anos?
Olhar é sempre um espanto. Em certo sentido, continuo a depender do olhar da mesma forma que dependia dele quando criança. Apesar de tantos anos de psicanálise, a fragilidade do meu olhar frente ao outro é a mesma que eu tinha na minha infância. Outra coisa é como eu me relaciono hoje com a imagem, com essas ficções ou formas de representação daquilo que chamamos realidade. Nesse sentido, não consigo aproximar-me delas da mesma forma que fazia quando comecei a tirar fotos. Tudo flui, muda, eu sou outro, o mundo é outro.
Você diz que é o país da infância que marca?
Sim, para mim. Eu li uma vez: “ninguém sai ileso da infância”. Repito essa frase, eles acham que é minha, mas não é.
Já é sua. A frase é de quem a diz.
Você lê um livro de 200 páginas, e o que fica é uma frase. Mas essa frase, para mim, é fundamental. O que você lê sobre o país da infância te dá asas, te restringe, você tem que lidar com ele o resto da sua vida, ou com a ideia que você tem dele.
E quando esse país é um país marginal? Porque o país da infância não é o mesmo se alguém estiver nos centros ou nas periferias. O seu país da infância é a Guatemala católica e, ao mesmo tempo, mestiça.
Mas também acho que tem a ver com as condições sociais da minha família, com o momento histórico. Ou seja, um guatemalteco, nesse exato momento, não vê o mundo como eu o vi na década de 60, por exemplo. Vivíamos em um dos primeiros assentamentos multifamiliares para a classe média na periferia de uma cidade pequena. Tudo isso vai marcando a maneira como você precisa inventar um mundo paralelo. O mundo não é suficiente.
“O mundo não é suficiente”. Como é isso?
Você precisa inventar outro mundo. Você tem que inventar algo mais, suas imagens me acompanham.
E, pode ser que o mundo que você inventa não seja suficiente? Então você precisa inventar outro?
Nunca é suficiente. É por isso que você sempre fracassa. O trabalho do artista é fracassar melhor. Precisamente por causa disso, porque nunca será suficiente. Mas sempre será necessário gerar um mundo para acompanhá-lo. Nenhuma imagem é inocente. Todas escondem um monte de informação debaixo do tapete. Você, de alguma forma, sabe e não sabe o que elas estão escondendo.
Você fala frequentemente de desejo e, ao mesmo tempo, de estar livre do desejo, ligado à influência do budismo. Há aí uma contradição, pelo menos uma tensão.
Claro. Se você tem a ideia de “eu quero encontrar tal coisa”, você não encontrará nada. Existe o desejo de representar um mundo visualmente, um mundo que me acompanhe, um mundo que me dê sentido. Mas para capturar esse mundo, eu preciso colocar meu próprio desejo um pouco de lado, simplesmente abrir-me às possibilidades que o mundo me oferece. Estar aberto para encontrar algo, ao invés de procurar obsessivamente por algo.
Usamos a mesma palavra para significar duas coisas muito diferentes. Tenho a impressão de que você está tentando se livrar desse tipo de vontade de domínio, busca e até mesmo de criação, que também é tão ocidental, como conquistar um mundo novo. Creio que isso deve ter que ver com a viagem à Índia e as leituras que você está fazendo, e um certo lugar que essas leituras e essa experiência de meditação estão tomando em você. Mas imagino que, embora exista uma renúncia a certo tipo de desejo, isso não apaga outro nível de desejo, sem o qual acho que você não seria um artista, você seria um eremita em uma caverna.
Não, não. Existe esse desejo. Sim. Definitivamente existe. Sem esse desejo, as ideias não se moveriam. Ou seja, seria um cara totalmente estancado nessa necessidade de criar imagens. Acho que criamos imagens porque nos sentimos sozinhos. São formas, possibilidades, de nos sentirmos acompanhados. Então, essa necessidade de gerar imagens é um desejo que surge da própria solidão, pela própria compreensão do mundo e de si mesmo. Isso vai me dando um sentido, e dá sentido a esse eu em um mundo, num contexto social e político. As ideias aparecem quando você permite alguma abertura. Existe o desejo de criar, mas também, se houver o desejo de ter uma ideia, a ideia não vem. É uma coisa muito estranha.
A psicanálise funciona com essa mesma premissa, tanto para falar quanto para escutar. Se você se abandona a um tipo de escuta em que você não tenta capturar nada, há algo do inconsciente do analista que registra coisas, e as articulações aparecem no momento em que devem aparecer. E, da parte daquele que fala, é muito comum que os pacientes mais obsessivos, que querem organizar o que se fala na sessão, se preparem de antemão. Eles dizem “eu quero dizer isso”, e por isso não se encontra nada novo. Por outro lado, se alguém se abandona para falar sobre o que lhe ocorre –é difícil chegar a essa disciplina– permite descobertas que nunca apareceriam de outra forma.
É exatamente sobre isso que eu quero falar. Existe o desejo de falar, há o desejo de se surpreender, por exemplo, com o que se fala. No contexto em que trabalho, se não me surpreendo com a ideia que nasce, não faz sentido prosseguir. Eu sei que vai ser um fracasso. Porque, no final, se não é um fracasso e se torna uma obra-prima, não preciso fazer nada mais. Felizmente, nós fracassamos, claro. Essa é uma das experiências mais valiosas da coisa toda, porque o fracasso é o motor para insistir.
Há um percurso seu, da chamada figuração à suposta abstração. Agora, você tira fotos e as retira dos retratos, e o fundo permanece. E fica um fundo abstrato. E nesse sentido, é como se fosse uma espécie de retrocesso, como se fosse do catolicismo ao judaísmo e ao islamismo, quando você entra em uma mesquita ou entra num templo judeu, não há imagens. As imagens estão proibidas, mesmo que existam exceções. É como se você “desimaginasse” sua obra, certo?
Para mim, é fundamental, para explicar a mim, meu trabalho e todo o desejo de alcançar esse ponto do nada. O nada como plenitude, como uma carga visual. Um nada que contenha visualidades enriquecedoras.
O nada como contendo muitas coisas, não como um vazio.
Não como vazio. Na Guatemala, havia uma igreja em um povoado, Chichicastenango, aonde ia para certas ocasiões. Há missas lá, mas há cultos pagãos dos indígenas. No mesmo espaço em que entram, bebem, gritam a Deus, carregam velas, flores. Esse é um mundo adentro. E o altar principal dessa igreja –onde colocaram uma quantidade indefinida de velas durante os 500 ou 600 anos que a igreja possui– está absolutamente defumado.
Mas as figuras religiosas estão?
Não se vê nada. Tudo preto. É uma espécie de gigantesco Malevitch para o qual as pessoas vêm rezar. Ele nunca foi limpo por ninguém. Se o limpassem, seria o maior sacrilégio que poderia existir. Então, esse preto é um preto simbolicamente cheio.
É um preto que pressupõe a imagem que está por trás.
Não só isso. Pressupõe 500 anos. Pressupõe um tempo, uma espessura. É como se pudéssemos dar forma ao tempo.
Tarkovski falava de “esculpir o tempo”…
Claro. Aí fica evidente o tempo como escultura. Então, quando eu entro essa igreja hoje e continuo vendo as pessoas rezando para esse nada, esse preto, eu só posso me fascinar. Essa é uma das imagens fundamentais na minha vida, visitar isso sempre esteve latente, eu apenas tive que fazer um percurso pelo figurativo para me aproximar no final.
Mas ainda é uma imagem para a qual se reza, você diz, mesmo que seja uma imagem abstrata.
Sim. Uma imagem carrega certa sacralidade. Há algo nas imagens –pelo menos na imagem que procuro– que precisa estar carregada com aspectos extra artísticos, inefáveis. Possivelmente, o destinatário da reza naquela parede negra é você mesmo. Então, possivelmente, há uma procura pela imagem onde se vê refletido não só aquela fumaça, mas todos os olhares que habitam esse preto. É como se você, com alguma energia, colocasse seu olhar, como se também fosse algo concreto. E essa concreção do seu olhar vai se tornando essa massa negra que de tão negra pode ser um espelho.
As imagens têm memória, então?
Elas têm memória. Porque as imagens, como diz Didi-Huberman, são muito complexas, ele pode falar isso de um ponto de vista filosófico, mas com as limitações que eu posso ver da imagem, é simplesmente a consciência de que o que vemos não é a imagem, é outra coisa, há uma experiência.
Didi-Huberman fala de imagens como teólogo, você fala como um crente… Não só como historiador de arte, um, e artista, o outro, há algo da enunciação de cada um que muda. Você fala de certa fé nas imagens, e enquanto Didi-Huberman as estuda, você as inventa.
Eu preciso habitá-las.
Você disse em um momento que “o olhar é uma ferida e a cicatriz é a imagem que se produz aí”. A imagem que você inventa serviria para suturar uma ferida, mesmo que momentaneamente?
Isso mesmo. Há obras que me afetam muito. Luise Bourgeois fazia essas esculturas a partir de restos de tecidos costurados. É a representação mais próxima daquilo que penso do ser humano. Uma radiografia de uma experiência de vida. Penso que seu trabalho é uma consequência do que ela viveu, ligado a sua experiência de infância, com as solidões que enfrentou. É como se, em um ponto da sua vida, você não pudesse fazer nada com suas poucas palavras e sua experiência. Você precisa viver um pouco mais de tempo para, quando adulto, poder retomar os fios que você deixou totalmente enredados e tentar dar-lhes uma ordem menos precária.
A arte se vinga
Ver menos é ver mais?
Não sei. De qualquer forma, é. Por que a obsessão de ser visto pelo outro? Porque a sua obra, de uma forma ou de outra, é parte de você, essa oferta que você oferece ao mundo. Mas você está sempre com esse desejo de que alguém a veja, certo? De socializar o seu olhar, de que seu olhar se torne público. E, se não é, são experiências dolorosas. É como voltar a uma espécie de frustração ou incapacidade que, na infância, você tem frente a um mundo de adultos aonde você não pode fazer nada, e fica uma espécie de paralisia. Então, você faz a sua obra para sair dessa paralisia que traz da infância. É um momento em que você pode redefini-la, lançá-la no mundo com a ideia de que outro se veja refletido nela. O que eu faço com isso? Não sei…
Tudo está na infância, para você?
Não sei se tudo, mas uma grande parte, sem dúvida. O que acontece é que eu não me lembro da infância.
E apareceu algo nas análises que tenha levantado um pouco desse esquecimento?
Não. A verdade é que a pessoa que se lembra da minha infância e da dela é minha irmã, e acho que essa memória lhe custou muito caro.
É melhor esquecer?
Não, melhor fazer arte.
Ah, claro. Mas em algumas situações, é como se fosse ou a arte ou a loucura, não é?
Em certos casos, sim, em certas sensibilidades. Não sei como dizer. Mas, de uma forma ou de outra, criar possivelmente te afasta da vitimização. Não ser mais uma vítima da sua infância. Porque na infância você é, se vale a contradição, um sujeito passivo, de alguma forma. Você é falado por outro, cuidado por outro, manipulado por outro. E a arte se vinga. Aquele sujeito passivo da sua infância toma a palavra, e faz com essa infância o que tiver vontade.
Um romance.
Um romance está bem.
Mas um romance guiado por ele. Digo isso porque existe também um romance no neurótico, dizia Freud, o romance familiar. Todos nós contamos um romance de nossa vida. O que acontece é que muitas vezes o roteiro desse romance foi escrito por outro. E quando pensamos que contamos nossa história, na verdade contamos uma história onde ocupamos o lugar que o outro nos atribuiu.
Que maravilhoso…
Existe algo na arte de se reapropriar da história: vou contá-la do meu jeito.
Você sabe que, digamos, isso tem uma relação próxima. Uma das obras de que mais gosto de Rauschenberg é a que faz quando compra um desenho original de De Kooning e o apaga.
Bem, mas está apagando uma assinatura importantíssima. Não é o nada. É apagar algo que existia.
Fazer com isso, fazer com uma narrativa que tinha um peso, por exemplo, a voz do seu pai, e é transformada em outra coisa. Mas você a torna sua, não é nada nesse momento, mas é muito. E o gesto, o simples gesto de apagar, não é?
E então, o quê? Desenha alguma coisa?
Não, é uma peça em branco. É como se, salvando as distâncias, como se eu estivesse comprando um quadro de Bacon e o pintasse ou jogasse aguarrás e o dissolvesse. É um gesto…
Como quando Ai Wei Wei quebra os jarros.
Também, claro. E esse gesto de destruição, é um gesto que alguém, como criador, faz. Pego uma experiência de vida, estão aqui, e os quebro em pedacinhos para, com esses pedacinhos, fazer outra coisa.
Existe aí uma boa definição de análise. O que acontece é que ocorre de uma forma mais privada. Um artista tem uma espécie de passagem para o público importante.
Ballard dizia em um conto que, todas as manhãs, quando ele acordava, levantava, colocava os pés no chão e explodia uma granada que pulverizava tudo. O resto do dia era gasto pegando os pedaços para se deitar de novo. É como um Sísifo transformado. Há alguma coisa na narração dele com a qual eu me sinto identificado. Mas não sei se sou ele, ou se eu sou um dos pedaços, ou a granada, ou o quarto. Não sei onde estou, mas sou alguém da narração dele, sem dúvida. Quando alguém é afetado, quando uma obra o comove, é porque está na obra, mas não sei se dá para saber em qual parte. Possivelmente, essa é uma das razões pelas quais você vê um trabalho e continua vendo, continua vendo e encontra mais e mais coisas.
Você diz que, em um ponto, é melhor não saber tanto ou não saber tudo?
É que você nunca saberá porque, como a vida, é fugidio. Ou seja, vejo as imagens como obras vivas, nunca estáticas.
Como realidades paralelas?
Sim, mundos que te acompanham. Literalmente, vão comigo, vão envelhecendo… Vão mudando, depende das necessidades.
Quais estão com você?
Uff… e agora, o que eu digo? Bem, há muitas imagens que têm a ver com os pintores pré-rafaelitas e os pintores barrocos. Minha grande influência é o barroco. Embora, e agora, o que eu digo?
Do barroco à abstração. Mais contundente, a mudança, inclusive.
Sim, do barroco à abstração.
Ao mesmo tempo, o barroco é a negação do vazio. Pode-se pensar que, se vamos a fundo no barroco, alcançaríamos o vazio.
Sim, sim, sim. Pode ser tanto excesso que não haja nada.
Pela via do excesso, de fato, alude-se ao que não está. É como um modo defensivo de aludir ao que falta.
Claro. E essa experiência, que eu digo, por exemplo, você está em Nova York, na Times Square, há tantas imagens que você não vê nada.
Uma saturação.
Claro. Então, o excesso leva você de volta ao nada. A soma de todas as cores leva ao branco. Possivelmente, o que sempre me interessou no barroco foi transcender o visual, ir mais longe. Aquilo de uma imagem que te captura nunca está na imagem.
E onde está?
Está em você e na forma como você olha essa imagem. A imagem é simplesmente um detonante.
E como é isso que foi dito, que não somos nós que olhamos, e sim a imagem que nos olha?
Penso que existe uma reciprocidade porque vejo a imagem precisamente como um organismo, como uma experiência. Você está vendo algo, mas você a dota de potencialidades. Suas obras, quando nascem apesar de você, é quando são necessárias.
Apesar de você?
Além da sua vontade. Não sei como colocá-lo em palavras.
Como se você fosse um médium, não um artífice…
Claro, você simplesmente recebe a imagem.
Essa é a definição de um artista. Um artista não é alguém que vai a uma escola de arte e decide “vou começar a fazer arte”, como outro decide fazer alfajores…
Essa é a definição.
Nesse sentido, não é uma escolha ser um artista ou não. Ou você concorda com isso ou não. Um artista se deixa levar por algo que vai além da sua vontade.
É inevitável. É uma experiência inevitável.
Escutar o que a imagem esconde
Como um artista vê a psicanálise? Em um duplo sentido: como um corpo doutrinário e possível estímulo para pensar, e como dispositivo. Susan Sontag dizia que era como uma forma não reconhecida de arte, e a ligava à performance.
Existe algo de performance, de colocar-se a falar, mas, antes de mais nada, essa ideia de surpreender-se com o que você diz sobre si. As ideias nos parecem interessantes quando nos surpreendemos. Então, no espaço psicanalítico, quando você se surpreende com o que disse, é o momento em que realmente há reflexão. Um encontro não pensado. Você encontra algo que não pensava de si mesmo, e isso te ajuda a pensar sobre o que sente sobre a vida, porque de alguma forma está lá oculto. O que acontece é que, quando você me falava sobre a ideia de falar sem ter um assunto, por exemplo, essa ideia da psicanálise… como se chama?
A associação livre.
A associação livre. É muito difícil. Digamos, a associação livre é como quando você está pensando, por exemplo, ou quando está querendo meditar, e as ideias vêm e você precisa tentar que não… Simplesmente, como uma nuvem: deixá-las passar.
Bem, mas aqui é preciso fazer entrar as ideias que vierem.
Claro. Aqui, as ideias que vierem devem ser tomadas e lançadas. E se vier outra: tomá-la e lançá-la.
Tomar e lançar.
Claro, tomar e lançar. É o oposto da meditação. É absolutamente o contrário.
A psicanálise é o oposto da meditação…
O oposto da meditação, claro, é deixar a mente vazia e tentar deixar os pensamentos passarem. Quando você está no dispositivo psicanalítico, você tem que ter outra atitude, você tem que lançar as ideias que te preocupam. Mas, no meu caso, vou muito programado.
Você vai com alguma coisa programada?
Vou com algo programado. Ou seja, a associação gratuita para mim… não é tão livre. Não me permito essa liberdade. Eu não me permito porque estou pagando um monte de dinheiro, então a ideia de ser delirante sobre minhas ideias e, depois, de pensar no gato, estive pensando em meu pai, estive pensando em uma viagem ou um sonho, eu não consigo. Eu tenho que me concentrar.
Mas é estranho. Note que você diz que o espaço artístico tem muito em relação ao espaço analítico, ligado à possibilidade de algo surpreendente acontecer. Mas, ao mesmo tempo, no espaço analítico, de alguma forma, você não permite ocorrências surpreendentes.
Sim, elas aparecem.
Elas aparecem apesar de você.
Apesar de mim.
Ou seja, a psicanálise funciona para você, apesar da sua vontade de tomar as rédeas do assunto.
Claro. Preciso estar olhando para o meu analista. Não funciono com a ideia de estar falando com ele no vazio, deitado. O divã para mim é uma bobagem, eu me sinto absolutamente perdido. Preciso ver e ser visto. Eu me construo a partir de como me veem, e construo a partir de como eu vejo. A linguagem é outra coisa. Eu também estou analisando o analista, seus gestos, sua postura, às vezes sinto que ele está entediado, às vezes sinto que está muito atento ao que estou dizendo. E muitas vezes vejo o vazio, porque ver o vazio é ver sem ver.
Vamos ver se eu entendo… Você precisa estar sentado, vendo o analista. Mas, ao mesmo tempo, em algum momento você precisa virar sua cabeça e ver o vazio.
Sim.
Também é contraditório, porque você precisa manter esse nível em que o olhar é o mais presente, mas em certo momento você precisa desviar o olhar, sair desse eixo do olhar.
Sim, eu preciso sair desse eixo do olhar para poder pensar e elaborar, por exemplo, uma ideia que me preocupa em um determinado momento. Ou seja, não poderia elaborar a ideia em profundidade, que é o que eu quero, se eu estou vendo o seu rosto. Sim, há um pouco de emoção, essa do divã, de estar vendo o vazio, mas sentado.
Como se tentasse encontrar o vazio de alguma forma.
Para pensar, sim. Acho que tem a ver com outro aspecto da meditação: ver o espaço sem ver.
Como seria?
Ver um espaço, mas sem estar ciente do que estou vendo, dirigindo minha cabeça, por exemplo, para um determinado espaço e deixando as ideias fluírem. Mas não em associação livre, mas uma ideia particular. E eu a elaboro desse jeito, e muitas vezes me surpreendo com uma coisa que digo. E, obviamente, o analista tem muito a ver com relação a como ele elabora o que estou dizendo ou como a conversa continua.
Já aconteceu com você, nesse espaço onde pode haver encontros com algo inesperado, que apareçam aí descobertas que estão ligadas ao seu trabalho artístico ou que te levam a produzir obras? Ou vão por caminhos diferentes?
Não, são duas coisas totalmente diferentes. Eu falo do meu trabalho, obviamente, e acredito que entendi certos aspectos do meu trabalho a partir da minha análise. A busca do olhar, a busca por retratar alguém olhando para mim, vendo a câmera, vendo o espectador, para tornar-me um espelho, a consciência de ter um olhar que me sustente, gerar imagens que me ajudem, por exemplo, são pensamentos que surgiram da minha análise.
Então, a análise ajudou você a entender as coisas que você fez como artista, e não a inventar coisas novas como artista.
Não. São coisas que acontecem fora, caminhando pela montanha, dirigindo. Na análise, estou interessado em tentar entender. Por exemplo, vejo um filme: Buñuel Lanthimos, o diretor de Canino. Quase sempre que vejo um filme, eu entro na internet para procurar o filme, digamos, “Canino + psicanálise”.
Você sempre coloca a psicanálise em relação aos filmes?
Sim, sempre. A crítica da psicanálise é mil vezes mais rica do que a da história da arte, do que a própria crítica da arte. Mais rica, mais complexa, muito mais profunda.
O que a crítica de arte não faz que a psicanálise faz?
Ler revistas de arte me deixa entediado. Talvez você também fique entediado com as revistas de psicanálise. Em vez disso, vejo uma revista de psicanálise e digo: “uau!”, ideias fenomenais.
O que é entediante é o mais do mesmo, e o que é interessante é um olhar estrangeiro…
Absolutamente. Às vezes, quando vejo exposições e leio revistas, digo: “estou metido em um mundo onde todos estamos nos masturbando”. Uma masturbação global. Fazendo obras e obras… Aonde vamos parar, o que estamos fazendo? Claro, existem artistas extraordinários que saem disso que estou falando no momento, mas às vezes me dá uma espécie de decepção, sentir-me parte de uma gigantesca comunidade de, digamos, artistas, criando obras para ver quem é o mais descolado –não sei como se diz na Argentina– em vez de tentar cavar um pouco dentro de si mesmo e fazer uma peça que abra um mundo para você mesmo. E a psicanálise permite isso. Eu tentei, de alguma forma, poder ser um psicanalista da minha própria obra.
Como?
Tentando entendê-la a partir do pouco que sei de psicanálise, ou seja, nada, mas, como minha esposa diz: “Você faz análise há 25 anos, não te serviu para porcaria nenhuma, não é?”, ela me diz [risos]. E o que eu digo? Bem, talvez tenha me ajudado para quando eu dou uma oficina e alguém fala, e eu digo: “Ah! Você está colocando um nome em seu projeto que não tem realmente nada a ver com o que você está tocando, por quê? Acho que você está falando sobre o sofrimento pela morte da sua mãe”, por exemplo. E a pessoa começa a chorar. Mas eu digo porque sinto que é o que ela está tocando, e isso não é uma sessão de psicanálise, está nas minhas oficinas. O mesmo que posso ver em alguém que me apresenta sua obra.
De certa forma, poderia ser que alguém que tenha passado muitos anos sentado, no seu caso, ou deitado num divã, falando em um contexto psicanalítico, em algum momento comece a funcionar ele mesmo com uma escuta psicanalítica?
Não sei se é uma escuta psicanalítica, mas estou mais interessado em escutar do que em ver.
Qual a diferença entre escutar e ver?
Se você… se a sua atenção está 100% na imagem que estão te passando, certas coisas podem passar despercebidas, ou certa entonação ou certas palavras que a pessoa está falando sobre a sua obra. Eu sempre insisto: devemos ser capazes de falar sobre o nosso trabalho. Não é como antes: você tem a ideia, o fotógrafo trabalha a imagem, a imagem fala por si mesma, você não precisa dizer nada. Eu não acredito nisso, absolutamente. É preciso manter, a partir da palavra, a própria imagem que se gera.
A escuta recupera algo que escapa da imagem.
Sim. Também outra coisa. É que a imagem também sussurra.
“A imagem sussurra”. É um verbo auditivo, com um substantivo visual…
Claro. É uma espécie de sinestesia, de musicalidade. Uma linguagem que não se torne inteiramente verbal ou visual. Há algo que se sente e se percebe da imagem que está na ordem da música. É preciso ter a capacidade de escutar o que a imagem mostra, mais do que qualquer coisa, o que a imagem esconde.
O que a imagem oculta aparece em um registro auditivo, não visual?
Não é visual.
Se escuta o que se olha?
Se escuta. Quando presto atenção a essa pessoa que está falando sobre a sua obra, presto atenção no que a imagem esconde.
Para ver se concordamos com isso: é como se houvesse na imagem uma dimensão de engano, e no que se escuta –a partir do relato sobre a imagem– há algo verdadeiro, escondido na imagem que se dá a ver?
Sim, de alguma forma, a imagem vela o que a constitui. Cada imagem esconde algo.
A imagem esconde palavras e você, quando escuta o que faz, restitui as palavras que a imagem deixa fora?
A imagem detona uma experiência, que é visual, mas também verbal. Eu não podia entender uma imagem se não colocasse palavras nela. Caso contrário, estaria perto de uma imagem próxima ao sagrado, ao inefável. Uma imagem que te deixa absolutamente mudo ou cego, ou ambos. Isso simplesmente te afeta, te comove. Há uma certa musicalidade na imagem. Quando digo que a imagem sussurra, mas que o que sussurra é música, é tentar dizer como, em um poema, a sonoridade tem muito a ver com a poesia, mas não está na sonoridade, na complexidade ou na profundidade do poema, nem está nas palavras, está em outra coisa.
Essa outra coisa?
Essa outra coisa que excede a linguagem. Estamos no espaço da poesia quando excedemos a linguagem, quando a linguagem deixa de ser o que é.
Existe alguma coisa que dê suporte à linguagem e, ao mesmo tempo, a supere de alguma maneira?
Claro. Aí eu sinto que estamos no espaço poético.
Um poema em comum
Você acha que se poderia pensar que a sessão analítica é um espaço poético?
Pode ser. Ela dá todas as possibilidades de criar espaços de alta emotividade. Poderia gerar uma espécie de… poderia dizer, um poema em comum. Pode haver um momento ápice quando os dois se encontram com os olhos úmidos, não é? Um momento de encontro. Como a arte, sinto que de alguma forma cumprem a mesma função.
A psicanálise e a arte…
Se a arte é uma forma de salvação, a psicanálise, eu também a vejo como uma forma, não sei dizer se de salvação, mas de ser capaz de lidar consigo mesmo.
E você a vê como uma arte, uma ciência, ou como alguma outra coisa?
Meus conhecimentos de psicanálise são muito limitados.
25 anos, você dizia…
Também não me serviram para porcaria nenhuma [risos]. Eu a vejo como mais próxima da arte. Se me propusesse gravar o que eu falo em minhas sessões, poderia ter escrito uma espécie de romance estranho, poderia ter saído um texto que possivelmente não teria pé nem cabeça, uma espécie de diário.
Uma autobiografia em capítulos…
Uma espécie de autobiografia que se alguém pudesse ler, ficaria surpreso. Se eu pudesse ler como foram minhas primeiras conversas em psicanálise, certamente eu me surpreenderia.
Há um preconceito –você deve ter escutado– de que muitos artistas não são analisados por pensar que a criatividade vem da sua loucura ou da sua neurose, e se se curassem disso perderiam o que os faz produzir sua obra. Claramente, no seu caso, não é assim.
É que a razão pela qual se inicia uma análise é a mesma razão pela qual você tem um profundo desejo de ser um artista: não ser capaz de lidar com o mundo. Os grandes temas que preocupam o artista não são muitos, são muito poucos, e realmente têm sido os mesmos na história da humanidade, que se elaboram de diferentes formas: o amor, o desamor, a morte, o sofrimento, o gozo, o desejo.
Os mesmos temas que aparecem repetidas vezes em uma análise…
Veja a mitologia grega, a nórdica, a hindu, a mitologia maia, e apesar de serem diferentes as maneiras em que se elaboram, as principais preocupações são as mesmas. Então, não é que o artista possa gerar agora um novo tema, por exemplo. Estamos em um ponto onde a tecnologia acrescenta maneiras de entender os grandes temas de uma forma mais complexa ou distinta. Mas, essencialmente, o que podemos dizer? O desamor, a solidão, desde a primeira poesia da que tenha conhecimento até o que se escreve agora, é um tema inevitável. Então a arte recicla. Reciclamos maneiras de representar certos tipos de ideias que vêm dando voltas. Anish Kapoor tem a ideia de que a obra de arte é a criação de mitologias pessoais. É uma ideia de que gosto, porque é assim: nossas obras são uma mitologia que inventamos a partir de outras mitologias. Nós simplesmente damos uma forma diferente.
Seu trabalho é extremamente poético, como se você fosse um poeta visual.
Esse é um dos meus interesses. Quando te dizia que a poesia surge quando a linguagem desmorona… A linguagem é mais do que a linguagem porque desmoronou. No campo visual, a imagem tem que ser mais do que a imagem, tem que transcender a si mesma.
Nada é mais real do que o nada.
Sim, imagine. É nesse espaço, e eu me pergunto por que eu posso comover-me em uma pintura onde não há praticamente nada? Obviamente, no quadro de Rauschenberg é um nada com história, o quadro tem uma narração, diz um monte de coisas, mas há pinturas que evocam algo que a linguagem às vezes não consegue transmitir.
O aspecto visual tem um poder evocador que vai além da linguagem? Será que a imagem possui mais poder evocativo que uma palavra?
Sim, há imagens que evocam algo mais, que com a linguagem você não consegue… acho que a linguagem atrapalharia.
O olhar sustenta, sem dúvida. No entanto, o dispositivo analítico é geralmente concebido a partir de certa remoção desse apoio. Onde seria possível ele encontrar sustentação, então?
Os olhares são vozes inaudíveis que entram em jogo de uma forma tendenciosa no dispositivo analítico. Sem troca de olhares, cada um, analista e analisando, dirige seu olhar ao vazio, penso que existe uma relação entre a atenção flutuante e um olhar flutuante, perdido no espaço. Ver sem olhar ajuda a concentrar-se nas emoções e gerar a confiança de que toda a análise se sustentará nas palavras, no silêncio, na entonação, na ênfase da sua história. Sem dúvida, uma subtração do olhar, certo desperdício, permite uma escuta e uma narração mais cuidadosa. Sem o valor das relações entre os olhares, a sutileza da escuta se aguça e a vadiagem emocional se intensifica. Como analisando, penso que você dever ir substituindo imagens por silêncios e palavras, você tem que dar voz a suas imagens.
Que lugar a psicanálise ocupa na sua obra?
Você escolhe ser um artista porque se sente desconfortável com o mundo, essa é uma das razões fundamentais para escolher traduzir, transformar ou pensar sua realidade a partir de outra perspectiva. A experiência da arte é uma via, uma forma simbolicamente poderosa para lidar com essa discordância e dar-lhe outro sentido. Tenho certeza de que você começa uma terapia pelas mesmas razões, para lidar com um mal estar, com um desconforto consigo mesmo e com a vida. Creio que é aí que reside a relação mais estreita que a minha obra guarda com a experiência analítica. Ambas surgem por uma espécie de desconsolo. São irmãs próximas. Por outro lado, tanto na minha obra quanto na minha experiência com a psicanálise, tentei lidar com os meus próprios fantasmas, com os temores que me afligem. Nós criamos porque não somos seres felizes e, partindo dessa condição, elaboramos imagens ditadas a partir de um inconsciente que deu sentido ao nosso olhar. A experiência psicanalítica abre fissuras na desmemoria esmagadora, ajuda a iluminar esse canto da sala que se manteve no escuro. Todo o meu trabalho é uma reflexão sobre a condição humana, sobre saber-se vivendo em um mundo estranho e inquietante, sozinho e à deriva, imerso em um universo ao qual somos totalmente indiferentes.
* Entrevista realizada em Cabana, Córdoba, nos dias 20 e 28 de junho de 2017.
[1] N.T.: Tipos de enquadramento da imagem em função do ângulo, quando o objeto é mostrado de cima para baixo, ou de baixo para cima, respectivamente. Literalmente, em francês, mergulho e contra mergulho.