Conversa com Julia Kristeva: “Cada sessão tem uma poética e cada pessoa é uma poesia”
A estrangeira
Por que a senhora “se viaja”?
Como você talvez tenha notado no título do meu livro[1], há um erro de francês, porque em francês não se diz “eu me viajo”. Diz-se eu me revolto, eu me liberto, mas se diz viajo, e não “eu me viajo”. Eu cometo este erro de propósito para criar um neologismo que demonstre que se trata de uma viagem comigo mesma e para dentro de mim mesma, ao meu próprio interior. Mas por quê? Primeiramente, para enfatizar, para mostrar ao leitor que eu sou uma estrangeira e que eu uso o francês como uma língua estrangeira, de modo que ele saiba que ele se dirige a uma estrangeira e que ele pode procurar a estranheza em si mesmo. Primeiro ponto. Segundo ponto, por que “eu me viajo”? É uma questão que tem diversas respostas, mas a primeira é que eu nasci em um momento em que o mundo mudava. Eu nasci em 24 de junho de 1941, e no dia 22 a Alemanha nazista atacou a União Soviética. Então minha infância se passou em um país que foi primeiramente ocupado pelos alemães e, em seguida, tornou-se um país comunista; nessa região do mundo, não se podia viajar. Era possível viajar dentro do país, mas a ideia de viajar era um tipo de absoluto, a liberdade absoluta. Mas o meu pai, que era religioso (minha mãe era darwiniana, e eles não queriam discutir entre si, mas eu alimentava a discussão), ensinou-me que era preciso aprender línguas estrangeiras. Ele dizia: “É preciso sair deste intestino do inferno”. Ele chamava a Bulgária de intestino do inferno, dizia que estava na Bíblia. No entanto, eu não achei esta frase na Bíblia, acho que ele que inventou. Ele dizia: é preciso sair do inferno e só há uma solução, aprender línguas estrangeiras. Então foi russo primeiro, também francês e inglês. Então, na minha cabeça, eu já me viajava. Eu me construí com vários espaços, várias línguas, culturas, etecetera. Essa foi a forma como eu me construí. E, em seguida, eu recebi uma bolsa do governo francês para escrever minha tese sobre o novo romance francês, em Paris. Meu orientador da tese me mandou para a embaixada francesa porque eu precisava passar num exame. Antes, não era possível partir quando jovem, era preciso ser comunista e velho. Mas o serviço cultural francês impedia as pessoas velhas e comunistas de partir. Meu orientador me mandou para a embaixada e disse: “Muito bem! Você fala francês, então vai. Você terá uma bolsa.”
Roland Barthes é quem te chamava de “a estrangeira”?
Ele era quem me chamava de “a estrangeira”, exatamente. E Lucien Goldmann, que gostava muito de mim. Eles me acolheram na sua aula e eu comecei a fazer uma tese, não sobre o novo romance… porque, ao mesmo tempo, eu encontrei a revista Tel Quel[2], Philippe Sollers. Eu fiquei próxima de uma jovem, porque os jovens se aproximam no exterior, que, por sua vez, me apresentou Aragon, e ele me disse: “É preciso fazer uma tese sobre o nascimento do romance”. Eu trazia junto com a minha tese e com Bakhtin o pós-estruturalismo, porque não se tratava de entrar em uma estrutura, mas sim de uma viagem entre diversas estruturas, e de ver o texto e o contexto, a estrutura e a história. Ao fazer esse trabalho, eu já estava na França, integrada à universidade e, ao mesmo tempo, eu trazia algo de novo. Eu sempre tive o sentimento de que essa abertura e a estranheza eram a única maneira de manter uma cultura viva.
De que maneira a senhora, “uma estrangeira”, chegou a uma disciplina como a psicanálise, uma disciplina de estrangeiros -de certa forma–, e uma disciplina “estrangeira” também?
Na Bulgária, não se falava de psicanálise porque era uma ciência burguesa e decadente. Meu pai tinha um livro de psicanálise, de Freud, em cirílico. Mas ele não o mostrava nunca, eu não sabia que nós o tínhamos. A gente tinha uma biblioteca grande, assim ele estava na última prateleira, com os livros de Dostoievski, porque eles eram todos proibidos. A gente os descobriu quando os meus pais morreram, há alguns anos. Deste modo, quando eu cheguei na França, sabia que Freud existia, mas eu não tinha estudado psicanálise e eu não tinha ideia do que era. E foi com o Philippe, que me levou a um seminário do Lacan, que eu comecei a ler Freud, Melanie Klein… No início, eu não entendia nada do seminário do Lacan. A gente ia partir com o Lacan para a China. Nós éramos a primeira delegação ocidental, o Grupo Tel Quel, indo para a China em 1974. E o Lacan ia conosco, mas ele não foi porque ele tinha uma história com a pessoa com quem ele devia ir e…
A “secretária” dele…
A secretária dele, digamos. Tem um capítulo do meu livro, Os Samurais[3], que conta essa história, como conheci Lacan e sua companheira. Ela o insultou –ela estava com outro homem e Lacan foi muito humilhado– então nós assistimos à briga entre Lacan e essa namorada. Esta situação fez com que ele não fosse para a China. Dá para entender por que eu não fui fazer psicanálise lacaniana. Eu o vi nessa situação, muito humilhante para ele, e eu não queria fazer sua análise, eu queria fazer a minha. Quando eu voltei da China, eu estava muito decepcionada com o que eu tinha visto. Eu falava chinês –parece que eu tenho os olhos um pouco chineses– e eles começavam a falar comigo, eu não respondia muito. Então, quando eu voltei da China, eu desisti tanto do chinês quanto da política. Eu me perguntava onde estava a esperança de maio de 1968, em uma cultura com uma história cultural diferente, com a caligrafia, a escrita chinesa, a implicação do corpo, o papel da mulher no taoísmo, etecetera… talvez houvesse um socialismo diferente. Eu perdi essa esperança. E eu disse: “enquanto eu estiver viva, não poderei fazer nada para mudar o mundo.” Mas, por outro lado, eu estava fascinada, mostraram-nos as mulheres. Era a época em que Mao colocava as mulheres e os jovens contra a burocracia do partido para tomar o poder no partido. Eu estava fascinada pela relação entre as mães chinesas e as crianças. Eu pensei: “Eu preciso me tornar mãe para cuidar dos indivíduos, das pessoas; e a única opção é a psicanálise.”
Depois dessa viagem, a senhora decidiu virar analista…
Exato. Na volta dessa viagem eu fui ver o Lacan e disse: “A gente se conhece demais; o senhor não pode ser meu analista.” Eu não disse que eu estava decepcionada com ele. “Quem o senhor aconselha?” E ele me aconselhou… o homem que estava com sua amante. Então eu disse: “Não vou entrar neste harém.”
Mistura…
Mistura, incesto, sexualidade… tudo isso. Entre os exilados dos países do leste, tinha o pai de Peter Fonagy, Ivan Fonagy. Eu não conhecia Peter, ele se tornou um burocrata… Mas seu pai era um homem incrível –fonólogo, linguista–, que fez análise com os alunos do Ferenczi. E quando eu contei para ele a história com o Lacan, ele disse: “Você tem que ir a um freudiano clássico”, e ele me encaminhou para uma mulher de origem alemã que se chamava Ilse Barande, que se tornou minha analista.
Uma mulher, uma estrangeira?
Uma judia estrangeira…
Menos popular que Lacan.
Sim, menos popular porque eu não queria estar nem na vida sexual de Lacan, nem na cena midiática dos intelectuais de Paris. Eu queria fazer minha análise para mim.
Muito boa escolha.
Sim, muito boa escolha. Ela é uma mulher que falou muito das relações precoces mãe-criança, e principalmente sobre o apetite dos neotenos. A criança e seu desejo enquanto incompleto, sua necessidade de ingerir o mundo e de se satisfazer. Daí que na oralidade, a sexualidade, trata-se é da fome. E Barande tem uma noção: quando a relação com a mãe se torna patológica, ela chama de mèreversion. E foi assim que eu comecei a fazer minha análise com ela.
Sair da abstração
O que representou fazer análise naquela época? O que aconteceu na sua vida com essa experiência, com a análise como uma experiência?
Aquilo me abriu… Eu vi o limite da política como resposta ao mal-estar humano. Eu sou muito severa quanto a isso; eu tenho a impressão de que toda a mutação que vivemos atualmente com a internet, com a globalização, faz explodir algo que já estava sensível depois de 1968. Quer dizer, vivíamos num mundo gerado pelo que Hannah Arendt chamou de a secularização, que cortou os fios com a tradição religiosa. Nem deus, nem mestre. A Revolução Francesa aboliu deus e a monarquia, e criamos uma democracia humanista e secular, a direita e a esquerda, o parlamento, as eleições, a democracia representativa, etecetera. E este sistema, que para mim era formidável porque era melhor que o totalitarismo, já não era a solução. Não se sabe qual é a solução política. No entanto, o mal-estar do indivíduo apareceu, na minha opinião, quando eu li Freud, e quando deitei no divã da Ilse Barande… este mal-estar me pareceu possível de ser acompanhado, melhorado, transformado… e a psicanálise se mostrou, para mim, como o único engajamento possível. Primeiro, para viver neste mundo e ajudar os outros, mas principalmente para mim mesma. Foi o que eu disse quando ela me perguntou: “Mas por que você faz análise?” Eu disse: “Primeiro, para sair da abstração, da linguagem abstrata”. Eu tinha um bom nível de francês quando eu cheguei, mas eu escrevia em conceitos, em teorias, e eu queria sair da abstração e me aproximar das pulsões, do inconsciente, da alquimia psíquica. Então, primeiramente pra mim mesma… falar de outra maneira, como se eu tivesse chegado ao limite no discurso teórico, e fazer algo diferente: “Vocês vão ver!” E, principalmente, eu tinha a impressão… E ela me perguntou: “Mas como a senhora era com a sua…”, porque eu falava do meu pai, que dizia que era necessário sair do intestino, e me perguntou: “E sua mãe…?” Eu disse que tinha a impressão de tê-la tocado como um balão toca o mármore, saltando. Eu adoraria reencontrar minha mãe e me tornar mãe. A história da análise me permitiu também assumir meu desejo de maternidade. Eu, que não era propriamente uma menininha que brincava de boneca, queria ser mãe. Eu era muito boa em matemática, aprendi francês, inglês; era uma mulher sábia, e com a psicanálise eu tive essa transformação também. É aí foi que nasceu o David, em 1975, e eu escrevi dois livros que carregam o traço da psicanálise.
Então quando a senhora estava fazendo análise descobriu que queria ser mãe, e que queria se tornar uma analista dentro da sua análise.
Isso. Eu queria escrever de outra forma e, além disso, ser mãe e analista. Mas ao sugerir Ilse Barande, Ivan Fonagy já me encaminhava para alguém que poderia fazer desta experiência analítica um ofício. Então era com a ideia de também me tornar analista, de ter um engajamento que não seja político, nem religioso, porque eu não tinha tendências nesse sentido, e continuo sem ter, e que eu não ficasse simplesmente na escrita. Eu queria ter uma escrita diferente, mas eu não me via unicamente com meu livro na biblioteca. Eu queria ter uma relação humana.
Na sua opinião, qual o valor da experiência analítica? Não apenas para a senhora, mas para todo mundo. O que essa experiência traz para nós?
É muito individual. Acho que chegamos agora, neste mundo globalizado, a um outro paradoxo. Tudo é cada vez mais global, generalizado, comum. Pensa-se em clichês, todo mundo se veste da mesma forma, as mesmas marcas para todos, etecetera. Isso, por um lado, e por outro, cada um por si. A singularidade que pode gerar narcisismos, mas eu também a vejo de um ponto de vista muito positivo. Quer dizer, a criatividade humana é singular, e isto é o objetivo da análise, proporcionar a cada uma das pessoas sua singularidade. Por isso, eu digo que não se pode dar uma resposta global sobre o valor da psicanálise hoje. Acredito que ela se dirija… ela desperta e estimula a singularidade de cada um para que a pessoa, de alguma forma, resista à banalização. Hannah Arendt dizia que por meio da banalização, os humanos fazem o mal. Então a psicanálise é uma maneira de tirar as pessoas da banalidade, de lhes outorgar sua singularidade. Durante todo esse período, com a psicanálise, eu também me abri muito para a história das religiões. Mas não para me converter a esta ou àquela religião, e sim para tentar entender como funciona a necessidade de crer. Esse culto da singularidade criativa está, para mim, inscrito na história da Europa, da Grécia, do judaísmo e do cristianismo. A Grécia, com o herói que se viaja, que vai em direção aos deuses, que está em guerra com os deuses… tem toda essa espécie de mutabilidade do homem grego; depois, tem os diálogos platônicos; é preciso entender cada ideia. No judaísmo, fiquei fascinada com a voz vinda da sarça ardente que diz a Moisés: “Eu sou aquele que sou…”, mas diz “Eu sou”, sem dar nenhuma definição. Tu, Moisés, tu vais enfrentar os desafios etc. Mas tu vais encontrar tua definição, tua maneira de ser, com os teus. E esta incitação que é dada ao povo judeu de ser um povo de indivíduos: juntos, mas que cultivam suas criações. A verdade é singular –isto é significativo. Cada sessão tem uma poética e cada pessoa é uma poesia. Não há nenhuma experiência que se compare a outra, e eu tento fazer isso. Claro que há muitos clichês, muitas coisas banais, mas enquanto não se encontra o incomparável de cada um, não se faz análise. Incomparável amor e incomparável ódio, porque uma análise que não analisa a relação, a transferência negativa e a pulsão de morte também não é uma análise.
A senhora disse que a literatura e a análise são a mesma coisa…
Não sei se são a mesma coisa, mas se parecem muito. No momento em que começo a análise, tenho o trabalho de escutar a singularidade de cada relato, de cada livre-associação. Cada um conta o seu romance, e cada pessoa no divã se torna escritora –não publicada, em rascunho– tentando reconstituir, com sua anamnese, a história familiar. Sabe-se muito bem que quando os analisandos não conseguem fazer um relato, quando eles estão na fragmentação, há um problema de defesa ou há um problema de isolamento obsessivo, até de clivagem. E quando eles chegam a reconstruir a história familiar deles, a análise se torna um pouco mais fecunda. Então a capacidade narrativa é algo importante na evolução da análise, mas também há muitas diferenças. Por exemplo, nós somos –nós, psicanalistas– sempre capazes de nos desfazermos, de nos retirarmos da livre-associação e de dar ao analisando uma interpretação que se refere à teoria freudiana ou à contratransferência. Mas, ao mesmo tempo, guardamos essa vigilância que é a ética da psicanálise e que não é cúmplice do belo e da narrativa, mas que está sempre presente quando falamos da ética que não é uma moral. Isto é algo que Freud sempre teve como guia em seu trabalho, como maneira de vigiar, de não se deixar seduzir nem pela compaixão, nem pelo erotismo, nem pela violência, mas sim permitir ao outro buscar sua própria ética sem impor a sua. Eu propus como tema da minha conferência: Prelúdio a uma ética do feminino. Por que “ética”? Porque a psicanálise é um exercício de singularidade, é solitário. E aí há mais uma diferença. Não apenas temos uma ética que nos permite permanecer à parte do relato, mas também permanecemos em uma solidão.
Mas é um exercício para a senhora?
É uma experiência.
E a senhora prefere entender a psicanálise mais como uma ciência ou como uma arte?
Nem uma, nem outra. É uma experiência única. É uma experiência única porque há uma parte de arte, justamente o relato, a capacidade de contar e de utilizar diferentes registros de linguagem. No meu trabalho, antes de conhecer Ilse Barande, e também enquanto eu estava em análise, minha contribuição à semiótica, à teoria, era considerar –contra Chomsky e contra Saussure– que a língua não é um sistema com sujeito, verbo, predicado ou com tal e tal estrutura fonética. É isso: nem estrutural, nem generativa. O que existe é a língua e o sistema da língua, que eu chamo de simbólico. Quando a criança aprende a seguir as regras da gramática, a construir argumentos, é uma dimensão extremamente importante na comunicação, mas não é tudo. Há uma dimensão que eu descobri –que eu chamo de semiótica– que tem as emoções, os afetos, e como eles são codificados em seus elementos pré-linguagem: o silêncio, os ritmos, as entonações, os gritos, as repetições; tudo que é ecolalia da criança, tudo que é pré-linguagem e que a poesia vai utilizar, buscando ritmos, assonâncias, e que refere à relação precoce mãe-criança. Então, eu estava obcecada por esse lado que a Melanie Klein tinha abordado um pouco e analisado, e pelos trabalhos de Hanna Segal sobre a pulsão depressiva e a entrada da criança na linguagem. Mas tudo que é pré-linguagem é algo que o paciente nos traz. Assim, quando eu escuto o paciente, não há só a comunicação que passa por sujeito, verbo, predicado e relato, mas também todos esses signos pré-verbais, entonações, ritmo, que se referem…
À música…
Sim. Lacan usa um termo que eu descobri recentemente; ele fala da língua partida. Como eu parto pão, por exemplo. A língua partida. Quer dizer, as cicatrizes da linguagem, os estados em que a língua treme, no lapso, ao inventar uma palavra ou ao usar um gesto durante a análise ou no divã; tudo isso que é da ordem da semiótica e não do simbólico e que se refere justamente ao sentido e não ao significado. Todas essas dimensões a gente escuta na linguagem, na psicanálise, de modo que quando você escuta isso, você está em uma musicalidade da língua que é um tipo de arte, digamos assim. Mas, ao mesmo tempo, tem a dimensão que Freud chama de ciência, porque ele investiga com o mesmo espírito científico de Copérnico, ou das ciências relacionadas à psiquiatria e à neurologia, e que precisa de uma exatidão. Mas, para mim, ele criou uma ciência humana, que não tem a mesma cientificidade. É uma ética suspensa, entre parênteses, que plaina sobre cada ciência e é guiada não pela preocupação de curar; não vamos curar ninguém. Freud disse três coisas para nos dar como referência. “Lá onde isto era, eu devo vir a ser”. Há um mal-estar, eu não vou te curar do mal-estar, mas eu vou permitir que você faça a sua viagem até a fonte e depois a gente vai nadar juntos para achar um caminho. Então, a primeira direção: “lá onde isto era, eu devo vir a ser”; lá onde era, nós vamos intervir. Isto é, na transferência. Eu vou nadar com você, eu vou voltar com você, a gente vai achar um caminho juntos. Esta é a ética da interdependência. E depois, dois princípios: o princípio de prazer e o princípio de realidade. Então não se deve ceder ao prazer, é preciso buscá-lo, você está lá para a sua felicidade. É algo que reaparece agora. Sabe, aos coletes amarelos as pessoas perguntam: “Mas, o que é que vocês querem?”, e eles não sabem bem, mas acabam dizendo: “A gente quer viver.” E eles ficam contentes quando se encontram na rua, quando eles conversam entre si, comem juntos; eles criaram novas comunidades. Há uma espécie de intercomunicação que se faz e que o sistema político não lhes dá mais. Então, está o princípio de prazer; o analista tenta compreender no paciente as fontes mais arcaicas, mais esquecidas, mais reprimidas, mais clivadas do prazer e do desejo, e tenta restituí-las: “Você tem direito”. Lacan disse: “Não se deve ceder ao desejo”. No entanto, eu não digo isto; isso é meio que um convite à perversão. Pelo contrário, princípio de prazer e princípio de realidade. O princípio de realidade se refere ao outro, às regras e à sua maneira de lidar com as proibições; de recompô-las, afastá-las, mas jamais negá-las. Então todo este sistema é extremamente complexo, mas a gente traz a isso uma respiração do humano num mundo em que os últimos textos de Freud o disseram de uma maneira extremamente angustiada; a sociedade vai se tornar cada vez mais aculturada, mais restritiva. E a gente vê isso. Nós achamos que com a globalização tudo é permitido, mas tudo é permitido à maneira de Dostoievski. Isto é, o assassinato, a violência, esta permissão também é extremamente restritiva. Não se deve contar com a sociedade para dar liberdade. A sociedade está lá para gerar técnica, reprodução artificial –que pode ajudar ou não– mas em certos números, ela conduz à robotização, a uma espécie de trans-humanismo. São coisas que não podemos impedir. Eu acho que a sociedade vai nessa direção. A psicanálise está aí para permitir que o animal falante recobre suas fontes e possa guardar sua singularidade (que é sua liberdade), inclusive neste sistema que vai se tornar cada vez mais restritivo porque cada vez vai ser mais técnico.
Que futuro a senhora vê para a psicanálise?
Ela começou mal porque há muitas dificuldades, muitas restrições, recusas à psicanálise pelo poder público, ignorâncias e desconsideração. E recusas porque não está mais na moda, não é a moda; é um mau momento para a psicanálise. E, ao mesmo tempo, eu observo –nos encontros dos quais participo– a pesquisa sobre a relação mãe-criança, as situações-limite como o trabalho sobre o autismo, trabalho que eu faço no momento e no qual eu me interessei muito, como eu disse há pouco quando falava dos diferentes limites do aparelho psíquico, da necessidade antropológica universal de crer. Isto é, a necessidade do outro, o investimento do outro que nós recriamos no pacto analítico. As pessoas estão perdidas, não acreditam em ninguém. O pacto analítico é a única resposta, no momento, que damos à necessidade de crer, sem levá-lo para um lado de seita ou de uma utilização política. Porque há a dissolução do laço analítico e a possibilidade de criar laços depois. Eu acredito que o fim da análise é a possibilidade de criar laços, além do que aprendemos, mas também guardando a ideia do pacto analítico. Então, se temos essa capacidade de criar laços em psicanálise, temos também a capacidade de os desfazer e de manter uma liberdade.
Eu queria perguntar uma coisa. O que Lacan achou de a senhora seguir o seu rumo, que não era o rumo dele? O que houve? Porque ele também era próximo do Philippe…
Sim. O Philippe continuou a seguir os lacanianos. Eu critiquei Lacan porque ele falava do significante, e eu dizia que o inconsciente não é o significante da linguística; tem a semiótica, tem signos que são quase indícios, ecolalias… tudo que tem sentido, mas não significado. Ele estava fascinado pelo que eu fazia e me convidou para apresentar meu trabalho em seu curso. Eu pensei em ir, mas eu estava um pouco angustiada. Eu era uma jovem mãe, eu não tinha forças, e disse: “Não posso ir”. Ele me convidou para almoçar e, naquele momento, já havia esgarçamentos em sua escola. Ele tinha dissolvido sua escola, ou –não me lembro bem– algo com a escola. E ele me disse: “Escuta: você não é alguém para escolas.”
Ah! A senhora é uma estrangeira!
É. Faça o seu caminho! Tem algo que vai nesse sentido. Eu fui convidada para um colóquio sobre psicanálise e linguagem em Nova Iorque, e eles convidaram o Jacques- Alain Miller e eu, e nós estávamos no avião juntos. Ele [Miller] estava ao meu lado, e em determinado momento ele me disse: “A senhora não se chegou a nós, porque tinha medo da gente [do grupo lacaniano]. A senhora tinha medo.” São hipóteses. Eu disse: “Não, não sei por que eu vim.” E ele disse: “Porque a senhora é uma mística. A senhora me despreza porque eu sou… eu escrevo os cursos de Lacan e eu não faço uma obra pessoal. E a senhora me despreza.” Eu disse: “Não! Jacques-Alain, é claro que não!” Nessa hora começou uma turbulência e derrubamos café em nós, e ele nem percebeu: “A senhora sabe, a senhora vai morrer, Julia! E vai precisar de alguém que faça seguir a sua obra. Não me despreze.” Eu dizia: “Escute, não! [rindo] Vamos morrer nós dois. E eu não preciso que alguém continue minha obra! Eu tô nem aí!” Ele estava tomado por essa ideia da perpetuidade de Lacan e de que ele servia à eternidade dele. Eu entendo que somos efêmeros, mas eu acho que a psicanálise persiste. De todos os discursos que existem hoje, o único discurso que conversa com a transformabilidade do aparelho psíquico, com a sobrevivência do indivíduo, da pessoa humana, é a psicanálise. A gente tenta manter as pessoas vivas e a gente consegue, nos melhores casos.
E por que a senhora decidiu permanecer na IPA?
Porque é o lugar mais polifônico, o menos dogmático. E eu não tenho vontade de entrar na administração, entrar nas guerras de uns e outros. Quando não se entra fundo, quando se faz o trabalho dentro da máquina política do aparelho –porque toda organização acaba por ser um partido– quando a gente não entra fundo, a gente faz o trabalho de analista, e eu tenho a sorte de poder escrevê-lo.
Não há tantos analistas que são também intelectuais com um lugar de destaque em sua comunidade…
Eu acho uma pena. Primeiro, que a psicanálise tenha desertado da universidade. As diferentes organizações psiquiátricas não puderam, não quiseram trabalhar seus discursos de maneira que eles não fossem apenas técnicos e clínicos, mas que tocassem à diversidade da criação humana, à literatura, à música, ao cinema, mesmo à política e, a partir disto, integrar a universidade, manter o contato com os jovens. É o grande erro dos aparelhos políticos da psicanálise, daqueles que dirigem o movimento. De certa forma, meus livros são lidos, mas não há muitos como eu. Acredito que a psicanálise, se quiser sobreviver, não deve abandonar a universidade. É preciso que a educação… na difusão do saber há psicanálise. E ela precisa também se encontrar nos lugares nevrálgicos da sociedade, lugares que mostram o inalcançável da vida social, as inovações e os sintomas, digamos assim. Eu falo de religião. Eu escrevi um livro chamado A incrível necessidade de acreditar [This incredible need to believe], que era um dos meus cursos em Paris VII, e eu levei esse curso para o Hospital Cochin, na seção de adolescentes suicidas, anoréxicos e aqueles que cometem crimes diversos, drogados, tudo isso. E agora recebemos radicalizados, aqueles que partem… meninas que se cobrem com a burca e meninos que se tornam, que fazem…, bom… que fazem tráfico de armas e que partem para o Estado Islâmico, e então eu levei meu curso pela necessidade de acreditar para a equipe do hospital. Eu não acho que todo mundo deva fazer isso, mas, de acordo com meu interesse, eu pude levar uma palavra analítica a esse lugar, com a necessidade de acreditar dos adolescentes, os ideais que nós não conseguimos satisfazer, o homoerotismo dos estudantes, dos adolescentes, a erotização do assassinato, da violência… eles se tornam heróis cortando cabeças, a psicossexualização do adolescente que os terapeutas não conhecem. Em primeiro lugar, não conhecem o discurso freudiano. Também não conhecem a religião. Trouxemos representantes, rabinos que são mais abertos, imãs abertos, católicos, que assim podem falar de várias crenças. Porque… você sabe o que acontece? Quando nos trazem um adolescente da periferia que é de origem muçulmana –mesmo que, quando ele chega sempre se torna difícil–, tentamos fazer psicoterapia, e se ele aceitar a gente diz: “Você pode fazer psicoterapia com o Sr. Cohen.” Ele diz: “Não, não. Eu não quero o Sr. Cohen.” Há um antissemitismo extremamente grande na França, sobretudo nas periferias. E as pessoas, os psicólogos que estão lá, estão desarmados; eles não sabem o que fazer. Então eu lhes disse: “Muito bem.”, e o que decidimos foi fazer um grupo, uma equipe intercultural e inter-religiosa que possa acolher esses adolescentes. No trabalho que eles fazem, eles começam a falar de sua religião, e que o bar mitzvá se faz de um jeito para os judeus e de outro para eles. Então a gente tenta fazer um trabalho que não está previsto em Freud, mas que passa por esse diálogo intercultural, inter-religioso, e pouco a pouco a gente ganha a confiança, uma transferência se estabelece com alguém da equipe, que é psicólogo ou sociólogo, e –na sequência– podemos fazer uma verdadeira psicoterapia. Mas passamos por diferentes níveis. Então é preciso aceitar que a psicanálise se adapta à neurose e ao sintoma, e aceita etapas de sua pureza antes de chegar a uma psicoterapia analítica ou a uma psicanálise.
Feminista atípica, pessimista enérgica
Julia, a senhora acha que a psicanálise, especialmente sua teoria, tem um certo atraso em relação à contemporaneidade?
Completamente. Não diria atraso, mas tornou-se um discurso extremamente técnico, extremamente metapsicológico. Se você é lacaniano e fala com a SPP, você não é entendido. E se você é winnicottiano, você não fala com o bioniano. Há uma espécie de fragmentação tecnicista do discurso analítico, que evidentemente é uma facilidade para se compreender entre iniciados, mas que não toca –não digo nem o grande público– mas mesmo educadores, sanitaristas, equipe pedagógica…
Por exemplo, tomando-se o feminino como tema, um tema principal, há um atraso? Por exemplo, as teorias queer têm pensado e questionado muito a psicanálise. O que a senhora acha?
A teoria do gênero trouxe um passo decisivo para o reconhecimento da estranheza humana. E isso foi, eu acredito, um momento muito importante a ser reconhecido no acesso da humanidade contemporânea à sua diversidade e ao direito de reivindicá-la, vivê-la e reconhecê-la. A psicanálise demorou até deixar de se sentir atacada por essa teoria –porque eles começaram por atacar a psicanálise–, mas também para entender a novidade, sedutora, e, ao mesmo tempo, os desacordos que nós podemos ter. Há algum tempo tem trabalhos importantes de pessoas que são mais abertas do que nós, e que debatem com a teoria de gênero para trazer a visão freudiana. Esta teoria do gênero trouxe muito entusiasmo subversivo, e era uma contribuição política interessante. O que, ao ler e reler os dois últimos textos de Freud, sobre a feminilidade e o mal-estar na civilização, insistem muito na bissexualidade psíquica, anunciada nos Três ensaios, desde sempre. Mas nesses últimos textos, Freud realmente colocou o cursor de sua teoria na bissexualidade e, especialmente, na bissexualidade feminina, insistindo muito na relação filha-mãe e na importância desta relação na psique da mulher, e depois no fato do Édipo feminino dar um passo suplementar que consiste em tomar como objeto do desejo o pai. Então a mulher produz uma mutação entre aquele erotismo ligado à sua mãe e seu novo erotismo que vai ser ligado ao pai. Esta espécie de duplo jogo do feminino é inacabado, e o Édipo feminino fica inconcluso e se forma continuamente. Então há sempre quiques e reconstruções na psique feminina. Essas ideias de Freud sobre a bissexualidade psíquica ser mais acentuada nas mulheres do que nos homens deve ser tomada muito seriamente porque ele diz algo muito interessante: o homem tem uma bissexualidade psíquica, a mulher também. Assim, o feminino do homem não é o feminino da mulher, e o masculino do homem não é o masculino da mulher. Em consequência, você tem dois indivíduos que são anatomicamente de dois sexos, mas eles chegam cada um com duas partes que não são as mesmas. Então, nossa partida sexual se joga entre quatro. Já temos um tipo de politopia psicossexual que faz parte do nosso desejo ou da nossa frigidez, etecetera, e conseguimos, não neutralizar o sexo, mas polifonizar e singularizar o sexo ao máximo, e acredito que esse é o aporte de Freud à teoria da sexualidade. É esta singularização ao máximo que não é nada destacada do organismo, mas o é da biologia e da anatomia. Freud primeiramente desnaturou o sexo porque a pulsão não é apenas energia instintiva ou hormonal; ela é sempre ligada ao fantasma, à herança cultural, ao transgeracional, de modo que é sempre psicorgânico, psicossomático. A sexualidade não é nunca natural; é dela que nos ocupamos e, além disso, é polifônica. Então, há algo dessa noção freudiana da sexualidade com a qual nós trabalhamos e que não é tão diferente do gênero visto de perto, e é lá que não se deve ceder. Para nós, o feminino e o masculino continuam sendo referências, mas que se conjugam diferentemente de acordo com a história pessoal de cada um segundo essa desnaturação do sexo. Assim sendo, nós não renunciamos ao natural; nós o tornamos mais complexo, e muito mais louvável, jogável, amável e detestável. É um tipo de riqueza nas relações sexuais e eróticas que Freud introduz, e mesmo de uma maneira superior à história do neutro. A ideia do neutro como uma liberação da sexualidade anatômica, a concepção freudiana da psicossexualidade com a bissexualidade cruzada e com aqueles quatro ou mais, com os fantasmas; é possível convocar mil coisas à cena primitiva. Ele nos dá uma sexualidade muito mais complexa e muito mais rica que convoca mais criatividade e exige criatividade de cada um. E, ao mesmo tempo, permite –por meio da manutenção do masculino e do feminino–, um tipo de identidade problemática sempre aberta e fora do total, que falta às pessoas que recusaram o masculino e o feminino, que falta aos teóricos queer, e que expõe as pessoas, quando as vemos em análise –sobretudo homossexuais ou queer– a estados noturnos extremamente perigosos da noção de não-identificação, estados crepusculares da sexuação. Eles renunciam à sexuação e entram em ausências de sentido, ausências de identidade que os expõe a limites (estados-limite) até a mortalidade, o suicídio ou a indiferença.
A senhora acha que existe um feminismo ou muitos feminismos?
Há muitos feminismos. Eu sou uma feminista atípica. Mas as feministas que são mais ativas são as feministas que lutam pelos direitos das mulheres. Estamos em uma sociedade em plena mutação; nunca tivemos esta mutação desde que a humanidade existe, ao menos desde que temos testemunhos a respeito. Temos os direitos das mulheres, mulheres ministras, mulheres presidentes, a paridade –mesmo de salários que se exige–, e ao mesmo tempo, temos milhões de mulheres no mundo que são submetidas a casamentos forçados, e as feministas lutam contra isso. Eu não entendo como a psicanálise conseguiu viver sem levar em conta todo esse mundo, todo esse sofrimento feminino. Há mulheres afegãs que se imolam com fogo para protestar contra casamentos forçados. Há muitas mulheres que não têm outra maneira de lutar além de se matar. Você entende? Do ponto de vista psicanalítico, elas são objeto de uma pulsão de morte, elas não existem como indivíduo, e elas não têm alternativa além de redirigir essa pulsão de morte a elas mesmas para chamar atenção sobre os verdugos, para que eles sejam condenados. E por que é que os psicanalistas não falam disso? Isto faz parte da globalização com a qual vendemos armas, fazemos comércio etc. Enquanto psicanalistas, digamos, eu sou feminista no sentido de que eu me interesso pelo feminino, e eu não quero –voltando ao neutro e ao queer, porque eles não querem falar de mulheres ou de homens–, não quero esquecer a palavra mulher quando há tantas injustiças para com mulheres que não conseguem ter orgasmos, que estão doentes, que não conseguem cuidar de suas crianças. Como eu posso ignorar que existem mulheres nestas situações? Então, já é um… o reconhecimento do feminino é uma obrigação que faz parte da ética, que não é a moral. Aí talvez seja necessário abrir um parêntese e dizer que a ética, há não muito tempo, pelo menos na civilização ocidental. A reflexão filosófica sobre o bem-estar, o assunto de como viver bem, e o que chamamos de ética existe há 2.500 anos, não é muito; E há duas tendências que são, por um lado, a moral. A moral que quer a felicidade das pessoas, mas que é diretiva, proibitiva, “você não faz isso, você faz aquilo, isso é o bem, isso é o mal”, assim é a moral. Freud não entrou nesta dimensão, ele explodiu a moral porque ele aceitou essa filosofia do bem-estar como luzes; ele aceitou, e ele retomou a dimensão que chamamos de ética e na qual as normas não são evacuadas, mas sim levadas em conta por outros parâmetros, que são a escolha, a vontade, vontade de ser livre segundo a própria vontade, e o cuidado. E esta dimensão representa os freios, as referências do nosso trabalho, da nossa maneira de escutar, de dizer isso, de interpretar assim. E, hoje, a norma evolui também. A norma naquilo que chamamos de bioética, quando se levam em conta os diferentes parâmetros e ela não é mais um ditado, ela não é mais um a priori; as normas são evolutivas. As normas evoluem, e também a ética freudiana porque ela está fundada na escolha: eu escolho meu analista, minha vontade, na qual desponta o desejo e o cuidado [care]. Essa norma explodiu a normatividade, e nós já não somos tão orgulhosos, nós analistas; E se eu não disser, ninguém dirá o quanto Freud, com essa compreensão da ética tem acompanhado o movimento da sociedade que quer mais liberdade, e isso inclui mais liberdade sexual.
Cuidado não é uma normalização?
Não. Cuidado não é uma normalização se são levados em conta outros parâmetros como: a escolha e a vontade, a vontade de desejo. Isto é, se eu procurar cuidado… não sei se isso é dito frequentemente: o cuidado se tornou uma noção de esquerda (a esquerda britânica principalmente). Os trabalhistas falam de uma sociedade que deve ser fundada no cuidado aos menos afortunados, aos pobres. É preciso desenvolver essas coisas. É uma esquerda britânica que buscou essas ideias em Melanie Klein, na ideia de reparação. E eu não acho que a psicanálise deva ser só uma reparação; é preciso haver uma reparação… quando fazemos consertos, somos supervisionados; vamos reparar, é um momento psicoterapêutico. Podemos reparar porque encontramos alguém que está em um estado completamente limite e vamos deixá-lo um pouco neurótico, mas o trabalho analítico começa quando colocamos a reparação em pauta e permitimos que a pessoa se arrisque na criatividade com os outros. Nós solidificamos a pessoa o suficiente para que ela possa se desenvolver criativamente ao assumir os riscos de um novo encontro. Aí não é mais o cuidado; o cuidado é uma etapa.
Qual é o cerne da sua conferência? O que a senhora quer dizer como ponto central desse prelúdio que está preparando agora?
Primeiramente, eu vou reabilitar a tradição na qual somos fundados. Isto é, o pensamento freudiano. Porque Freud realizou muitas intervenções que machucam as mulheres e continuam incompreensíveis ou muito pesadas, mas nunca houve preconceito contra mulheres. Isto é uma parte; inclusive, eu escrevi um livro sobre Simone de Beauvoir e me deparei com uma frase dela que não é muito conhecida: “Freud foi, entre os homens do século XX, aquele que eu admirei mais calorosamente”. Ela o criticou porque achava que ele se prendia muito à paternidade e ela era contra os pais. Ela estava mais próxima de Adler em O segundo sexo, mas mesmo assim ela disse a frase porque viu isso que estou dizendo, essa ética da liberdade bem enquadrada, mas que é uma ética de qualquer jeito e que, mesmo que não a empreguemos na escuta, permanece suspensa sobre as nossas cabeças. Em fonologia, chamamos isso de “colocar entre parênteses”. A ética está lá e a gente coloca entre parênteses, e interpretamos no calor, na ação, no concreto, mas isto permanece em nossa mente: a escolha, a vontade, o desejo e o cuidado, o acompanhamento do outro, a mutualidade, o investimento do outro, acreditar no outro. Então, eu vou reabilitar Freud, dizendo que compreende a psicossexualidade como desnaturada…; tem o corpo e o sentido, tem a repressão que constitui o ser humano. Ela pode assumir a forma de isolamento, clivagem, mas é essa complexidade do ser humano que dança sobre um vulcão, o vulcão sendo a repressão. E dos dois lados estão o somático e o psíquico. É este estado difícil que ele nos legou e, por sua vez, é uma fonte de fragilidade e de grande liberdade. Em torno da sexualidade –que se torna bissexualidade, polimorfismo, etecetera.– e com esse incentivo libertário, ele abriu o caminho para a sobrevida psíquica. Isso foi Freud. E nós somos os guardiões dessa mensagem, e devemos fazê-la viver nesta sociedade que vai cada vez mais na direção de outras restrições… porque a pornografia não é uma liberdade e o casamento não dá a todos liberdades internas, psíquicas, para as crianças, na relação com os outros. Não é suficiente legislar; é preciso acompanhar a criatividade dos seres. Agora, essa capacidade de se transformar, a aposta que ele fez no ser humano, pessoalmente, eu descobri no feminino. É o feminino que eu quero desenvolver, porque, de que maneira falar de uma identidade feminina neste mundo em que existe o queer, as lésbicas… impossível. Para mim, é uma identidade em transformação. Eu o chamo de “feminino em modo transformativo”. Apoio-me em Freud e desenvolvo também minha própria visão em minha própria clínica. Primeiro, entendo que uma mulher viva dois Édipos: Édipo primeiro, que é seu amor pela mãe, a relação com a mãe da qual ela não se desfaz jamais, que vai sempre habitá-la. E com essa dimensão de linguagem que eu chamo de semiótica, que passa pelos gestos, pelas imagens, pelos ritmos, as entonações. As línguas como o chinês guardam essa dimensão, porque é válido também quando a linguagem se constrói. Depois, há o Édipo número dois, quando a mulher muda de objeto: “mamãe, não te amo mais”…
Para o pai…
Para o pai. Mas é um pai que também é duplo. A gente não viu muito em Freud sobre o pai. Um pai do qual Freud fala em O Eu e o Id, que ele chama de o pai da pré-história individual, que tem a qualidade dos dois progenitores, qualidades psíquicas psicossexuais. Então há uma bissexualidade neste pai que reconhece a criança. E é o momento em que a fase fálica permite que a criança (menina ou menino) se associe ao meio pelo qual o pai a reconhece, que é mais sensorial que verbal. O pai está sempre no cuidado, claro, mas a proximidade corporal é menos acentuada com o pai do que entre filha e mãe. O que eu vivo com o meu pai já me desloca para a dimensão de linguagem. Mas desde que surge a bissexualidade psíquica do pai –que já existe nesta fase– isso me permite trazer também a bagagem da fase materna, do Édipo primeiro para o Édipo número dois. Então Freud imaginou uma espécie de peneira na evolução da menina: amor pela mãe, passagem pelo pai da pré-história individual e entrada no Édipo número dois. Este último significa tornar-se sujeito da ordem simbólica, construir-se como um ser, digamos… quase assexuado, simplesmente mental, que obedece às regras, às proibições, às normas e, ao mesmo tempo, para esse mesmo pai, dar-lhe seu amor e fazer um filho com ele. Então você vê quantas escalas, quantas configurações deve atravessar a feminilidade para passar por tudo isso e se tornar… ser inteira. Concluindo, nesta fase fálica, ela é sempre assombrada pelas precedentes –o feminino da mãe e o feminino do pai– e a mulher se sente estrangeira na ordem simbólica. Esta estranheza lhe torna amarga, melancólica, deslocada e, ao mesmo tempo, no melhor dos casos, irônica. Hegel disse que as mulheres são a eterna ironia da sociedade. Irônicas e combativas, talvez revoltadas. Estrangeiras e combativas.
Então, é mais fácil para uma mulher ser estrangeira?
Seu destino é ser estrangeira. Mas não se deve vivê-lo como uma maldição; é uma sorte. É uma sorte porque isso dá a maturidade de ter atravessado essas etapas, de guardá-las em si e, ao mesmo tempo, de poder jogar com elas, quando chegamos com a ajuda da psicanálise. Porque para passar todas essas etapas, imagine quantas catástrofes são possíveis, ocorrências de frigidez, conversões, doenças psicossomáticas, melancolias, suicídio… Se ela passar por tudo isso, ela vai ganhar essa maturidade que vocês, homens, não têm.
Seguindo esse raciocínio, há uma espécie de afinidade entre a posição feminina e a posição analítica.
Exatamente. Eu acho que Freud… por que Freud, nos últimos anos, se dedicou tanto à bissexualidade das mulheres e pesquisou o feminino no homem para reabilitá-lo? Em um debate com Marie Bonaparte, ele pronuncia a frase: “Mas o que quer uma mulher?”, e esse “querer” aí não é o Wunsch alemão, não é o desejo. É o querer: Was will das Weib? Então ele vai na direção da filha que não tem desejo pelo pai, mas tem vontades. Que talvez nasça livre, que tem ideais. E que tipo de ideais ela vai nos trazer? Agora, se você situar –acompanhe-me com atenção, porque com isso o cursor de Freud faz aparecer o feminino– não no continente negro que ele disse ser sempre enigmático. O que querem as mulheres? Transar, não transar, anal, oral… tudo isso persiste, mas ele inscreve o feminino nas grandes questões éticas do futuro da civilização, nos ideais que lhe preocupam no final de sua vida. Em 1930, ele disse que as forças de destruição vão talvez nos submergir, mas também ele disse que está em compasso de espera, pois talvez Eros possa achar um caminho, possa ganhar. Em 1931 e 1932, ele escreve os dois textos sobre o feminino e, neles também, tenta encontrar o que querem as mulheres. O que é essa sociedade que é bissexual, que tem feminino? Como isso vai nos permitir apostar nas forças de Eros e não de Thânatos? Como se o feminino em Freud continuasse sendo um enigma mesmo. Seria o sintoma do Sr. Freud que se perguntava qual seria seu próprio feminino? Seriam as mulheres que não conseguiram ser analisadas e, ainda é difícil saber, o que elas querem? Seria uma maneira de fazer perguntas sobre a resistência em análise e sobre a capacidade da análise de evoluir? Ou seria uma aposta em todas as mulheres que o ocuparam no fim de sua vida para achar uma resposta no campo do feminino para o mal-estar da civilização?
Uma aposta?
Como se ele tentasse ver… poderíamos dizer também, mas não o diremos nesta entrevista … ele está talvez descobrindo a homossexualidade da Anna. Não se sabe se Anna Freud realmente teve relações lésbicas, mas, em todo o caso, do ponto de vista psíquico, ela tinha uma fascinação pelas mulheres e ficou muito próxima. Será que é isso também que ele interrogava? Eu acredito que é mais amplo. Ele fazia… ele transformava sua ideia da sexualidade enquanto bissexual, e como esta organização bissexual poderia, talvez, tornar o desejo, ao mesmo tempo, complexo e transformativo, como são as mulheres. Mas quando se diz que as mulheres são transformativas, eu digo… talvez alguns dirão: “mas você quer dizer que as mulheres se adaptam?”. Não, não é isso que eu digo, senão que elas fingem se adaptar, mas elas não acreditam nisso. Elas permanecem estrangeiras.
Elas não se adaptam…
Isso. Elas tentam ir um passo além, elas acham que tudo isso é uma ilusão, mas vamos um pouco mais além na ilusão, e isso gera o maior dos votos. Há muitas mulheres que, de tanto querer acreditar em alguém, de querer chegar ao falo, ao pai, tornam-se fanáticas, quer dizer, o que é chamado de fanático. Voltaire dizia que este tipo de pessoa se torna crente pelo medo de não ser nada, uma espécie de integralismo assim para tapar buraco. Mas, ao mesmo tempo, são também as grandes revoltadas, as grandes místicas, as grandes revolucionárias. Então há essa dimensão que Freud estava descobrindo também. Vou dar um outro exemplo: a pulsão de morte. Em toda essa intimidade que se cria entre mãe e filha, a integração do outro e psiquização, o fato de buscar sempre a autenticidade, a presença oblativa… como o marido nunca é suficientemente mãe, a pessoa precisa dessa autenticidade que se viveu com a mãe. Mas, ao mesmo tempo, este Édipo primeiro está cheio de contradições, porque a mãe é vivida também como intrusiva, como aquela que abandona. Há guerras absolutamente incríveis… o desejo de morte entre filha e mãe é algo que não é como o Édipo, é como Electra, e como outros que permanecem e que acham muito natural querer matar alguém. Então, essa espécie de desejo de morte também é muito particular, sem drama, mas com esquivas, artimanhas muito próprias da psique feminina. E tudo isso deixou as mulheres muito sensíveis à pulsão de morte que anima a humanidade. Há um momento muito importante que vou tentar posicionar no discurso a respeito da relação entre Sabina Spielrein e Freud. Sabina Spielrein fez um texto em 1912 em que ela fala da pulsão de morte. Freud ainda não tinha anunciado a pulsão em 1912; ele falava um pouco, mas é nos anos 1920 que ele fala realmente disso. Ela disse que a pulsão de morte faz parte do Eros, então o Eros triunfa. Para a mulher, existe a pulsão de morte –isso não a assusta– mas é um momento do orgasmo, é um momento do seu desejo, de seu encontro com o outro. Ela é colocada sempre no depois, na continuidade. O tema do meu texto vai ser que o tempo das mulheres é o tempo do recomeço –não o tempo do individual, não o tempo comunitário– mas o recomeço, com as crianças, com as crianças pequenas, etecetera. Talvez. Em todo caso, para Sabina Spielrein, a pulsão de morte é uma causa do vir a ser, enquanto, para Freud, quando ele cita o texto dela em Mal-estar, ele lhe homenageia, mas ele diz que não entende tudo. Ele diz que ela o precedeu, mas que –para ele– a pulsão de morte que vai dominar, que vai nos levar, assusta-o. E quando ele diz que espera Eros, ele não acredita muito. Ele está na dominação dos humanos e do planeta, não é honesto. Talvez ele esteja em um pessimismo da dominação da pulsão de morte que vai destruir tudo, mas não as mulheres.
A senhora é otimista?
Eu sou uma pessimista enérgica. Eu acredito que a pulsão de morte, como Sabina Spielrein pensou tão seriamente, faz parte do Eros. Eu não sei. Eu li muito quando criança, queria ser astrônoma, e continuo lendo. Não se podia ir para a Rússia porque meus pais não eram comunistas… mas tem, entre as grandes teorias do cosmos, a teoria do Big Crunch: tudo irá se destruir, tudo vai cada vez mais no sentido da expansão. Isso está mais na linha de “é o Eros que domina”.
Referências
Kristeva, J. (1980). Pouvoirs de l`horreur: Essai sur l’abjection. Paris: Seuil.
Kristeva, J. (1983). Histoires d’amour. Paris: Denoel.
Kristeva, J. (1992). Les samouraïs. Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1983).
Kristeva, J. (2016). Je me voyage: Mémoires. Entretiens avec Samuel Dock. Paris: Fayard.
[1] Je me voyage: Mémoires. Entretiens avec Samuel Dock (Kristeva, 2016).
[2] N. do T.: Em português, “Tal Qual”.
[3] Les samouraïs (Kristeva, 1983/1992).