Georges Didi-Huberman: “Ninguém pode olhar pelos outros”
A seguinte entrevista se inicia com uma viagem em um metrô de Paris e acaba no Hotel Clube Francês, em Buenos Aires, ao compasso de Soulèvements, a grande mostra com curadoria do historiador de arte francês, Didi- Huberman que, nesse período, viajou de uma cidade para a outra.
A conversa, em um entendimento tácito, prescinde do inglês como língua franca. Então, as perguntas se formulam em espanhol, e as respostas, em francês. Dessa forma, o espaço do mal-entendido se potencializa, e o diálogo se aproxima de uma conversação analítica, dando lugar a achados que somente são possíveis entrever a partir do erro, de “escutar mal”.
No metrô em Paris lhe perguntava se você era judeu e de onde vinha sua afeição pelas imagens, sendo que no judaísmo as imagens estão proscritas. Você me respondeu, localizando-se na genealogia de W. Benjamin, Panofsky e Aby Warburg: “É que eu amo o sacrilégio!”. Queria te perguntar por essa linha sacrílega…
Vamos ver, essa ideia de que o judaísmo é completamente anicônico, contra as imagens, é falsa. Não é verdade, há sinagogas muito antigas com afrescos, em Dura Europos, por exemplo, na Síria. Há muitos manuscritos da Hagadá que estão iluminados com ilustrações… Além disso, as imagens são para mim um fato antropológico, não uma coleção de objetos. Você as têm quando sonha de noite, quando faz uma imagem literária… O termo imagem é muito amplo e operatório em um plano antropológico, e não no plano de se há ou não que representá-lo. Esse não é o problema. Por exemplo, a nuvem que acompanha Moisés no Sinai, quando ele vê a nuvem no céu, o que é? Não é uma imagem isso?
Por um lado, diria que a equivalência “judeu=contra as imagens” é um erro histórico. Mas ao mesmo tempo é verdade que ali há uma certa eficácia. Porque nos debates contemporâneos, por exemplo, no que tive com Claude Lanzmann, você sente claramente que há um iconismo cristão e, por outra parte, um aniconismo judeu e também protestante.
E islâmico…
E islâmico, evidentemente. Lidamos com isso. Veja o aniconismo islâmico na atualidade. É qualquer coisa essa ideia… os talibãs fazem explodir os Budas em Bamiyan, mas a produção de imagens promocionais, as fotos dos dignatários políticos são muitas, monstruosas, há uma produção de imagens gigante. O aniconismo é, frequentemente, uma desculpa para dizer: “Vou destruir as suas imagens”, o aniconismo é a destruição das imagens do outro. Na história cristã existe essa oposição ídolo-ícone. Ídolos são as imagens do outro e é preciso destruí-las, e ícone é o ícone de Cristo, e isso não se destrói. Essa reivindicação das imagens próprias para destruir as imagens dos outros –algo político, na realidade– é evidente no cristianismo, mas existe também nas outras religiões. Todas as religiões fazem suas imagens, todos fazemos imagens.
Bem, esta é uma primeira resposta.
A segunda resposta, já que você evoca o que eu te disse no metrô: é verdade que há uma geração de pensadores judeus que foram excluídos da religião, eu penso em Benjamin, em Panofski, Bloch, Karl Stein etc.. Todos eram judeus e se distanciaram da religião estrita –penso também em Kafka– e fizeram imagens, submergiram em imagens por espírito de sacrilégio, de profanação, sem dúvidas… Warburg cometeu um sacrilégio na sua família tornando-se historiador da arte. Aí está, eu faço parte dis, são os meus avós ideológicos se você quiser, me sinto parte disso.
Por outro lado, já que você é psicanalista, vou te contar tudo [risadas]. O meu pai era pintor, então toda a minha vida, toda a minha infância, eu vivi uma espécie de polaridade entre o meu pai sefardi, que passava o dia todo na oficina fazendo imagens, cores, formas, coisas às vezes eróticas, e, do lado materno, asquenaze, a Shoah, os livros…
As imagens e as palavras… Linda tradição… e dessa mistura sai você…
Sim. Penso de qualquer modo que, se você deixar de considerar as imagens como produção sacrílega, se as considerar unicamente como produção antropologicamente evidente, necessária para todo homem, toda mulher, toda sociedade, você irá perceber que o mundo das imagens e o mundo das palavras não estão separados.
Daí o interesse, já que falamos de psicanálise, desse conceito freudiano, “olhar pela figurabilidade”. Você conhece esse jogo de palavras, em francês: se você tem medo de ser enganado (trompé) pela sua mulher, vai sonhar com um elefante, porque tem trompa (trompe), é a potência de conversão das imagens e das palavras. As imagens, as palavras e os corpos. Os corpos que fazem imagem, por isso comecei pela histeria.
A histeria é essa operação misteriosa de transformação plástica, de conversão plástica de algo que é da ordem da memória.
A lição do método
Você responde às minhas perguntas antes mesmo de que eu as faça…
Sinto muito! [risadas]
O livro sobre a histeria foi o seu primeiro livro… Charcot montava aquele grande teatro da histeria… você sabe que Freud esteve ali, fazia falar o que Charcot lia especialmente do campo do olhar, como gestos. Como se houvesse uma clivagem epistêmica entre o campo do olhar e o da escuta. Talvez seja algo maniqueísta a divisão, considerando o que você dizia…
De certa forma, você está refazendo a mesma pergunta: isto é, Charcot, cristão, que se interessa pelas imagens; Freud, judeu, que se interessa pela escuta. Essa divisão existe, podemos dizer que Charcot queria inicialmente ver, e Freud, escutar. Porém, profundamente, antropologicamente, essa divisão não existe.
Se eu me lembro bem, teoricamente o momento mais fecundo para mim, mais importante desse livro sobre a histeria, não é uma fotografia nem uma frase de Charcot, e sim uma frase de Freud absolutamente extraordinária, todo o meu trabalho tenta desenvolver o que essa frase pede. É no artigo de Freud (1908/1992) As fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade.
Você o toma nesse duplo gesto masculino e feminino ao mesmo tempo…
Ai está! Charcot, no momento mais desorganizado da crise, não via mais do que uma espécie de caos, algo impossível de ser fixado em uma representação clara: isso é algo do olhar, de forma alguma da escuta. Freud via nesse caos da histérica em crise e muito provavelmente pensava no que tinha visto na Salpêtrière, e não no que acontecia no seu consultório em Viena, porque imagino que não havia muitas crises desse tipo no seu consultório; porém, em Paris havia muitas dessas crises violentas. Freud relembra uma dessas crises que viu na Salpêtrière e diz que nessa espécie de caos há uma função de dissimulação, esse caos dissimula o fato desse corpo estar dividido em dois: uma parte masculina, a do estuprador, e uma feminina, a mulher estuprada. Então, uma parte do corpo está em conflito, luta, se debate com a outra. O que de início Freud percebe é essa polaridade no interior do mesmo gesto. É preciso estar muito aguçado para ver em meio a esse turbilhão, e reparar nessa linha de simetria! Em seguida diz que essa linha de simetria tem uma função de dissimulação do fantasma inconsciente, ao tempo em que está extremamente, plasticamente, figurado, de forma teatral. É espetacular, fantástico! Você está diante de uma imagem, você não a entende, descobre ali polaridades e vê que essas polaridades têm uma função de dissimulação, e vê subjacente o fantasma inconsciente. É uma lição do método do olhar. Então: Charcot olhando, Freud escutando é a vulgata, mas penso que Freud contribui aí com uma lição sobre o olhar melhor do que ninguém. E é muito melhor do que quando olha um Leonardo da Vinci, muito melhor, ali olha uma histérica.
Mas também escutava, porque uma das coisas que toma Freud nessa época é uma frase de Charcot, dita por ele de passagem, sem dar importância, de que na histeria sempre está em jogo a coisa sexual…
Mas você chama isso de escutar? Isso é também olhar: as histéricas se apresentavam sempre em evidentes posturas sexuais, era preciso saber olhar. Acredito que a oposição entre imagem e palavra, olhar e escuta, é uma oposição conformista e limitada. De fato, já que falamos de psicanálise, vou falar de Pierre Fédida…
Era seu amigo, certo? Você escreveu Gestes d´air et de pierre[1]. É uma homenagem, verdade?
Sim, a transformação em livro das honras fúnebres que pronunciei quando faleceu. Foi um grande amigo, muito importante para mim. Eu o conheci no momento em que fazia a minha tese sobre a histeria, eu mostrei a tese para ele. Ele teve grande importância na minha vida, como amigo, não como analista: eu nunca fui analisando nem psicanalista, nunca fiz análise.
Nunca?
Não [risadas]. Um dia perguntei para Pierre Fédida: “É grave? Nunca tive vontade de fazer psicanálise”, disse. Ele riu muito e me disse: “Não, está muito bem, deixe assim” [risadas]. Mas também porque a escrita é para mim uma constante auto-análise, tenho a impressão quando escrevo, embora escreva sobre outras coisas, de que escrevo uma perpétua auto-análise, é um sentimento muito forte que não é necessário que seja visível, mas é muito importante para mim e… O que é que eu queria te dizer?… Ah, sim!: volto ao assunto do olhar e da escuta… Fédida era um psicanalista excepcional, pois não era corporativista, era muito aberto principalmente à filosofia e tudo isso. Escreveu um texto belíssimo sobre a experiência do analista quando abre a porta e vê pela primeira vez o paciente. Não se trata ali somente da escuta: você abre a porta e está diante de alguém que vai, talvez, ser o seu analisando. É muito interessante…
É possível olhar o que se escuta e escutar o que se olha, de alguma forma?
Sim, de certa forma sim, acho. As duas formas se intercambiam. Olhamos muito com frases, as frases são miradores, há frases que olham, o que tento fazer porque o que amo é escrever, não pintar: fazer frases que olhem.
Entendo que você trabalha com o tempo e as imagens no tempo, mas há algo de instantâneo, sincrônico, no olhar, enquanto na escuta se requer certa diacronia. Não haveria, nesse sentido, dois registros que se diferenciam?
Estamos ainda frente ao mesmo problema: você faz uma distinção que me parece conformista. Quando você diz que a escuta está na diacronia, tem razão, mas tudo está na diacronia, no tempo. Não é verdade que o olhar não esteja no tempo. No olhar há momentos, instantes, e há também duração. Agora eu olho para você e isso dura.
A fotografia se diz “instantânea”…
Não é verdade, toda fotografia tem uma duração, um tempo de exposição. O que chamamos “instantânea” é a invenção em fotografia de um tempo de exposição muito curto, mas, ainda assim, é um tempo. Por exemplo, na exposição há fotos de uma histérica que dá um chute no aparelho fotográfico, o pé está borrado, já que o tempo de exposição é bastante longo, meio segundo já é longo. Há tempos cada vez mais curtos, mas a noção de instante absoluto é uma abstração, o tempo zero. E essa ideia de que olhamos tudo de golpe, em um só instante, que o olhar é puramente sincrônico, como você diz, é uma ideia tipicamente modernista, é uma ideia falsa: o olhar é tempo. Diante da imagem estamos diante do tempo, uma imagem é tempo, sempre, sempre. Tudo é tempo.
Nesse sentido, ler imagens está de acordo com esse seu modo de concebê-las: ler imagens, pensar em imagens…
Sim, porque ler… tudo depende do que você entende pela palavra “ler”…
Quando era jovem fazia a crítica da iconologia de Panofsky à legibilidade, criticava o fato de considerar as imagens como texto a ser decifrado. Uma vez que você conseguia traduzi-lo ou encontrar a chave do enigma, estava feito. Você resolveu! You solved the riddle. Então, eu não gostava da palavra “legibilidade”. Depois, quando comecei a ler precisamente Walter Benjamin, vi nele uma noção tão genial de legibilidade –extremamente ancorada na tradição judaica–, e nesse momento mudei de ideia em relação a essa palavra. Então estou de acordo com que seja possível ler imagens, mas ler as imagens no sentido de Benjamin. Ele dizia: “Ler o que jamais foi escrito”. Com isso estou totalmente de acordo.
Há uma concepção sua das imagens que se distancia da vulgata, principalmente da vulgata psicanalítica que pensa nas imagens como algo pleno, completo, ao que não faltaria nada… Há uma época em Lacan na qual o registro do imaginário pareceria ser de menor categoria do que o do simbólico. Parece-me que isso muda bastante no último tempo de sua produção, mas há uma vulgata onde o imaginário sempre vale menos do que o simbólico ou inclusive do que o real, como se o imaginário fosse o ilusório, e ao mesmo tempo o completo, o pregnante onde não falta nada. Não é o modo como você aborda as imagens…
De acordo, mas, quando você diz isso, está de acordo com esse modo de pensar o imaginário?
Não, não…
Porque isso é um conformismo também. Em termos exclusivamente lacanianos, se os três registros estão em relação de nó borromeano, quer dizer que nenhum dos três é mais importante do que o outro. Isso se vê claramente nos primeiros seminários de Lacan: 1954, 55, 56. Há análises do imaginário fenomenais, magníficas! De fato, digo “fenomenais” porque nesse momento ele ainda está muito próximo da fenomenologia, portanto não tem problema com o imaginário. Depois vem a importância da palavra, do significante… É complicado um significante em uma imagem… você não sabe o que é. Então, um significante em um texto funciona, a gente tem certeza, abre a página de um livro e diz: tenho certeza de que é um significante; porém, em uma imagem, como pode se determinar? Um significante por definição é velado, é isolado, como você separa algo de um quadro?, muito difícil, é a mesma matéria…
De qualquer forma, é verdade que há uma vulgata lacaniana que desvalorizou o imaginário como ilusório, que é uma espécie de ressurgimento do platonismo. Isso estava no debate que tive sobre as imagens de Auschwitz, com Gérard Wajcman, analista lacaniano, mas que tem essa posição conformista e falsa de desvalorização do imaginário. Interessa-se muito pela arte, considera-a muito bem, mas a imagem é maldita. Não estou de acordo com isso.
Agora, por que para mim a base é a psicanálise?
É a base porque são as minhas primeiras leituras teóricas: Freud. Desde criança estive muito interessado pela história da arte, da pintura. Acredito que um dos livros mais importantes da minha vida, de adolescente, de criança, foi um livro de Freud sobre Leonardo da Vinci. Foi também uma forma de descobrir, de ver o que se confrontava à pintura, à história da arte e, isso –me lembro muito bem– para mim estava ligado à descoberta da sexualidade. Por exemplo, essa passagem de Freud –nesse livro sobre Leonardo da Vinci– sobre a fellatio… Foi a primeira vez na minha vida que escutei falar de felação, através de um livro teórico [risadas].
Há não muito tempo escrevi um livro sobre Eisenstein, e ele disse que o livro mais importante da sua vida é o livro de Freud sobre Leonardo. Conta que o leu no bonde e que levava consigo uma garrafa de leite, e, enquanto lia no bonde, se esqueceu completamente de descer no seu ponto e depois deixou derramar toda a sua garrafa de leite [risadas].
Bom, então, essa foi uma base. Quando fiz os meus estudos de filosofia, fiz a minha tese de mestrado sobre Lacan. Comecei a ler Lacan aos 18 anos, graças a um professor de filosofia do ensino médio que nos mergulhou em Lacan: muito forte! Sim, Descartes, Hegel, Freud e Lacan. Um professor genial, fantástico! Eu era lacaniano, demais, talvez; o problema com Lacan é que é muito difícil para se libertar, ter um ponto de vista: quando se torna dogmático, é insuportável. Quando é uma caixa de ferramentas, principalmente que serve para ler outras coisas… Lacan me fez sentir vontade de ler um monte de coisas. Leu muitos livros, isso é formidável. Bom, o meu primeiro livro foi sobre a histeria e é muito freudiano, e também lacaniano. Depois trabalhei com psicanalistas, com J-B Pontalis, em dois números especiais sobre a imagem da Nouvelle Revue de Psychanalyse. Pontalis me convidou um dia para integrar o comitê permanente dessa revista, e eu não aceitei. Depois houve outra revista, muito importante, da qual fiz parte do comitê permanente, L´inactuel. O comitê era formado por Marie Moscovici, psicanalista que escreveu coisas belíssimas sobre o objeto; Pierre Fédida, outro psicanalista brilhante; Patrick Lacoste; Charles Malamoud, o melhor antropólogo indianista; e Nicole Loraux. A produção intelectual dos psicanalistas na França é hoje em dia muito menos fecunda, há ainda alguns grandes autores, mas não muitos… então me distanciei um pouco…, mas trabalhei durante muito tempo com psicanalistas.
Um mestre desclassificado
Freud poderia fazer parte então dessa genealogia de sacrílegos, junto a Benjamin e Warburg…
Claro, o livro sobre Moisés, escrito e publicado quando o povo judeu estava em um momento de maior perigo, é de uma coragem extraordinária e uma loucura total! Publicar essa espécie de crítica sobre a identidade judia, em uma época em que os judeus estavam em grande perigo na Europa, é incrível como coragem intelectual. Hannah Arendt teve essa mesma coragem. Você o chama sacrilégio, sim, é sacrilégio de certa forma.
No Moisés, Freud apela a uma teoria que parece que não seria muito sustentável: que Moisés era um egípcio, você lembra? Era um estrangeiro. Há algo em Freud, e me interessa em relação ao seu lugar –que também é um local que ocupou Hannah Arendt de alguma forma–, que é esse lugar de estrangeiro, inclusive de judeu um tanto estrangeiro. O lugar que a judaicidade na diáspora encarnou muito e me interessa em relação à psicanálise também. Um olhar de estrangeiro em direção à psicanálise…
Sim, é central à psicanálise.
Mas não sempre se aplica, porque às vezes no mundo psicanalítico prevalece a autoctonia, não a estrangeria.
Um dos livros mais importantes de Pierre Fédida (2009) se chama Le site de l´étranger. O lugar do estrangeiro é a própria situação psicanalítica. É um grande autor, mas tem um estilo muito difícil.
Sua própria escrita também é difícil, de um estilo hermético…
Eu evoluí no meu estilo. Desde que comecei a ensinar, o meu estilo se tornou mais legível. Mas vem também dos tradutores, porque na tradução o mais difícil é traduzir um estilo. Sofro muito isso, mas faço um grande esforço literário.
Ao estilo de Barthes, esse tipo de escrita?
Sim, Barthes foi um grande mestre. E Foucault está escrito de forma sublime, é da grande literatura francesa! Quando era estudante, fiz anotações sobre A arqueologia do saber (Foucault, 1969/2008) e, de fato, copiei quase todo o livro, não podia cortar nada. E copiei também à mão a Traumdeutung [risadas].
Essa é uma história para Borges, você como Pierre Menard, autor do Quixote… [risadas]. Mas hoje você é desses maître à penser[2] como era Foucault ou Barthes…
Não, não.
Parece-me que sim… Você já viu a agitação que gerou a sua presença aqui na Argentina, certo? [Xícaras e colheres caem]. Como você vive isso? Porque eu ouvi você assumir a herança intelectual de Benjamin, que, apesar de provir de uma família abastada, era um desclassificado, um marginal…
Sim, totalmente de acordo! E Bataille também. Para mim, Bataille é muito importante. Escrevi um livro sobre Bataille… Bom, qual era a sua pergunta?
Hoje em dia, o seu lugar é como uma espécie de rock star intelectual, de muito prestígio e que atrai muita gente. Você deve ter percebido isso em Buenos Aires estes dias…
Percebi isso especialmente aqui, porque há um estilo de audiência, de público: todos querem que eu assine, todos querem tirar uma foto comigo, há um lado assim que… é muito complexo para mim.
Desconfortável?
Bom… é preciso se ajeitar com isso. Mas a lembrança de Benjamin não me abandona, no sentido que você disse: como um homem desclassificado. Ele é o verdadeiro mestre… Você sabe, por 35 anos, eu fui um desclassificado…, fracassei três vezes na minha habilitação.
Por quê?
Porque fazia um trabalho que não agradava aos meus colegas da academia, foi muito complicado. Adquiri o meu reconhecimento no exterior, principalmente na Alemanha, onde me honraram muito. No entanto, a ideia de ser um mestre do pensamento me horroriza. Não existem mestres do pensamento. Ninguém pode olhar pelos outros. Muitos artistas medizem: “Você, que sabe olhar… diga-me: o que vale isso que eu faço? Diga-me o que você pensa”.Eu acho isso horrível!
No seu caso há algo que eu percebo como uma virada de época: antes um historiador de arte via, analisava obras de arte… hoje, há artistas contemporâneos que fazem obras inspiradas no seu trabalho, você sabe isso?
Sim, e me comove muito. Se eu posso inspirar os artistas, isso é para mim uma grande honra, mas mestre não! É por isso também que me distanciei do lacanismo. Porque o lacanismo funciona como um discurso do amo (maître).
Em espanhol temos duas palavras diferentes para o que o francês tem apenas uma. Maître em francês é, o que em espanhol equivale a mestre e também a amo, este último, no sentido daquele que escraviza outro…
Quando você diz “mestre” não tem esse sentido de dominação?
Não, “mestre” é totalmente o contrário, é aquele que faz o outro pensar, é uma palavra maravilhosa, enquanto “amo” tem o sentido de dominação…
“Amo”, então, quando você diz “eu amo você?” [Ri às gargalhadas] Terrível!!! De acordo: “amo” [risadas].
Esse efeito é o que introduz a estrangeria, certo? A estrangeria faz ver o que não pode ser visto da própria língua.
Sim, muito interessante! Então, em francês, em qualquer caso, maître tem quase sempre a ideia de dominação. Lacan, quando introduz Hegel, fala da dialética do maître, amo, e do escravo.
Eu, quando dizia maître à penser, pensava na ideia de mestre…
Sim, mas veja o que fazem os maître à penser hoje em dia: comportam-se como dominadores. Por exemplo, Badiou diz o que deve ser o amor, a dança, ele se comporta como amo, e não como mestre. Se existe essa diferença, eu gostaria muito de ser um mestre, não tenho certeza de ser um, mas gostaria de ser um mestre virtuoso.
Mestre como aquele que introduziu você a Lacan no ensino médio…
De acordo, nesse sentido eu gostaria. Mas considerando que as pessoas, os leitores, o público, a audiência que vem a mim e me considera um mestre têm atitude de escravo, isto é: buscam um amo. Dizem “mestre”, mas desejam um “amo”. Quando Lacan dizia aos estudantes de 68 “vocês procuram um amo, e vão ter um”, ele pensava em termos de dominação. A ambiguidade de Lacan é que ele teorizou sobre esses quatro discursos, onde o discurso do analista não deve ser o discurso do amo, mas seu discurso era um discurso de amo. Eu penso assim.
Há dois fenômenos que confluem quando alguém é identificado como mestre no sentido de virtuoso. A alguém que trabalhou muito, demandamos que se transforme em dominante, dominador. Percebo, principalmente nos estudantes, que têm um tipo de necessidade de um maître à penser no sentido de se inclinar perante esse pensamento, ou de demandar a esse pensamento uma função profética. Demandamos aos filósofos serem profetas. Costumam me perguntar: “Você, que já fez uma exposição sobre sublevações, quando haverá outra sublevação?” E o que eu posso saber disso?! Você vê?! Rapidamente se transforma uma pessoa que é simplesmente um trabalhador… eu prefiro que digam que sou um trabalhador, um operário do pensamento. Porque essa é a minha vida cotidiana, eu trabalho sobre uma mesa, uma mesa grande de costureira, de artesão, e me identifico muito como artesão, trabalho com as minhas mãos: faço as minhas fichas assim, depois as corto, sou um trabalhador. Depois os meus livros, se forem lidos e ajudarem outros a trabalhar, isso é magnífico, me sinto mais do que satisfeito. Mas me sinto, como pessoa, muito descontente, muito desconfortável com o poder, para dizer logo de uma vez. No meio acadêmico, a questão do poder é vital… é o que Foucault demonstrou: o saber é poder. Se quiser saber sem ter um poder, é um problema. É difícil. Há uma tarefa extra a realizar para separar o saber do poder, o que eu gosto disso é o “saber alegre” de Nietzsche, A gaia ciência. Mas há uma demanda de poder e às vezes você tem o prazer do poder… porém, para mim, não é nada prazeroso, eu não tenho esse prazer.
Há uma semelhança com o que acontece com um psicanalista. Atribui-se a ele um saber em uma situação clínica, e isso acarreta a atribuição de um poder que não é exercido, do qual não teria que abusar, nem sequer usar. Nem sempre acontece. Quando sigo o seu trabalho de “operário do pensamento” e leio, parece-me que é um lugar bastante isomórfico ao de um analista, como se a sua posição frente às imagens, inclusive frente à cultura, fosse um posicionamento desde essa estrangeria bastante próxima à de um analista…
Sim, como eu disse, o meu modo de trabalhar está ligado à análise. Por exemplo, um elemento muito importante é a rejeição a interpretar imediatamente, a rejeição a concluir: esperar, isso está muito ligado à regra psicanalítica da interpretação. Aprendi isso lendo Freud. Sinto como muito necessário isso para mim, justamente para não ter o poder sobre os objetos que estudo. Tento, não tenho certeza de consegui-lo, é sempre um ensaio.
Olhar sonhando
Bom, a sua escrita gera essa sensação de que não há obra conclusa, como se fosse um grande ensaio por capítulos, uma obra aberta em permanente processo, a work in progress…
Sim, é assim. Tenho um amigo muito, muito bom em história da arte e que quer fazer, sobre um assunto específico, “o” livro, o livro absoluto. Ele é capaz, mas não vai fazer isso nunca. Eu digo a ele: “Escreva cinco livros, é mais fácil do que um” [risadas].
Muitos franceses –também Benjamin– trabalharam a ideia de fragmento… Há algo maravilhoso no fragmento e muito mais afim ao humano do que qualquer totalidade…
Sim, está também a ideia, é Lacan, de que a verdade não é toda. Então, não diremos jamais tudo. Um livro está em uma trajetória, em uma aventura de pensamento. Por isso eu não mudo, não melhoro um texto velho, o que melhoram são os textos sucessivos.
Há uma ideia muito interessante no seu trabalho, que é se distanciar da imagem como véu e tomar a imagem como parte.
É na polêmica com Wajcman: por um lado, há uma concepção da imagem ligada ao véu, à aparência e a que a verdade está por trás; por outro lado, uma concepção de que a imagem é capaz de desvelar o seu próprio véu. Isso é o que eu acredito realmente.
Deleuze dizia que não vivemos em uma civilização da imagem, e sim em uma civilização de clichês, é diferente. E que fazer uma imagem é descarregar o clichê.
Quando você vê uma mulher chorando: o psicanalista lacaniano conformista irá te dizer que é um esquema ideológico, é o imaginário. Os discípulos de Barthes dirão também isso, como os críticos de arte americanos. Quer dizer que de repente veem em uma mulher que chora o estereótipo que é um véu, que é preciso buscar a verdade por trás disso. Mas há certas imagens de mulheres que choram que já são o que desvela, tira o véu, e que tocam o real.
Esse é um ponto importante no seu trabalho: as imagens podem tocar o real, não o velam.
Somente tocar, como a palavra. A palavra “grito” não grita. Isso não quer dizer que não devamos usá-la, que seja nula, às vezes consegue tocar, é modesta. Uma imagem é modesta. Algo na forma que pode tocar o real. Nem sempre acontece.
Fiquei muito impressionado quando vi na mostra do Jeu de Paume o modo com que você expôs as quatro fotos tomadas pelos Sonderkommando em Auschwitz, pequenas, pouco grandiloquentes, como imagens arrancadas do real.
Fiz as reproduções porque não há original dessas fotos, tomadas com um filme, o filme é o negativo. O original que se possui é a prancha de contato, o negativo está perdido. Então, a prancha de contato é o positivo diretamente do negativo, ou seja, na mesma dimensão, é isso o que eu mostrei na exposição, nunca tinha sido mostrado assim. Essas fotos sempre foram ampliadas a quatro metros, foi modificado o quadro… eu não, eu as mostrei exatamente como se parecem.
Tocou-me, senti muitíssimo. É interessante que estejam perdidos os negativos, a perda como algo inscrito desde a origem.
Sim, e o que você vê em Buenos Aires é um fac-símile da prancha de contato, não é o original que está no Museu de Auschwitz, é muito visto, visitado, não é deslocado dali.
No Japão há algumas imagens de Hiroshima; a radiação da explosão funcionou como um grande aparelho fotográfico e deixou em muros a sombra da pessoa que estava ali sentada… Pensava que essa imagem por um lado, e essas pequenas imagens, são como uma clivagem de época. Você acredita que Auschwitz e Hiroshima são como os fatos que definem a contemporaneidade?
Eu parti, como muitos, dessa ideia, mas as ideias evoluem. Há muitas coisas que se esclarecem, por exemplo, bombardeios sobre Dresden… é sempre perigoso fixar as coisas, é evidente que Auschwitz é um caso extremo, mas, ao mesmo tempo, é o nome de um campo e houve centenas de campos. É um nome importante, mas, se serve para ocultar todos os demais, não funciona. Claro, tem Auschwitz e Hiroshima, mas se dizemos Hiroshima, por que não Nagasaki? Há muitas coisas, é perigoso resumir, o pior que pode ser feito com um nome ou uma imagem é torná-la um fetiche, fixá-la, isso é perigoso e vale o mesmo para as palavras.
Sua ideia da imagem como fetiche se opõe à imagem como sintoma. Quando você fala de imagem como sintoma, aproxima-se ao sintoma psicanalítico?
Sim, se aproxima, mas é diferente. Há um texto em L´inactuel, acho, onde P. Lacoste e eu dialogamos sobre o sintoma. Ele diz que o que chamo sintoma não é o mesmo que os psicanalistas chamam, pois para o psicanalista o sintoma é o que está colocado adiante pelo paciente, e o psicanalista deve ir atrás. Enquanto para mim –para expressá-lo de modo rápido–, em um quadro, em uma imagem, o que está adiante é a representação, e é preciso ir atrás, porque é ali que se encontra o sintoma.
A situação do psicanalista é especial, pois quem vai ao analista inicialmente mostra o seu sintoma. Mas quando você olha uma obra-prima da pintura antiga não vê o sintoma. O sintoma está dissimulado, como na crise histérica, a bissexualidade está dissimulada, o sintoma, o fantasma inconsciente, está dissimulado.
Usei essa palavra “sintoma” muito tempo. Eu a uso muito menos agora. Quando você usa muito uma palavra, ela se torna mágica. Mas essa noção de sintoma sempre foi muito importante, existe desde o início, vem da diferença entre o que Charcot chamou de sintoma e o que Freud chamou de sintoma. É totalmente diferente. Então, a base do meu trabalho na história, a partir da histeria, é essa nova semiologia inventada por Freud que não tem nada a ver com a semiologia médica. E é sobre isso que estive em desacordo com Foucault, tivemos um dia de discussão sobre isso. Para Foucault a psicanálise era unicamente a continuidade de certos conformismos e certas estruturas do discurso médico. Ele não estava completamente errado, há muitos psicanalistas que são como médicos. Mas, de fato, o conceito de sintoma freudiano não é um conceito da semiologia médica, é outro conceito.
Há pensadores, como Foucault ou Deleuze, que parecem contrários à psicanálise, mas ao mesmo tempo são muito estimulantes para que nós, os psicanalistas, pensemos.
Estamos totalmente de acordo.
Essas ideias de montagem e anacronismo, muito presentes no seu trabalho, poderíamos pensar que também estão perto de conceitos psicanalíticos, bem como o de sintoma. Porque a associação livre é uma espécie de montagem que vai se reconfigurando o tempo todo; e a concepção de temporalidade em psicanálise tem muito a ver com o anacrônico, o Nachträglichkeit freudiano…
Completamente. A ideia que tive sobre o anacronismo das imagens também vem diretamente da noção freudiana de temporalidade: entre a memória, o presente e o desejo. Essa espécie de nó onde você está no presente e de repente tem um fragmento do passado que surge, ou tem um desejo; essa é a análise freudiana da subjetividade que fez com que eu me distanciasse em direção à história das imagens.
O dispositivo analítico é um dispositivo anacrônico em si mesmo…
Por quê?
Se você parar para ver a contemporaneidade com as tecnologias, a hiperconectividade… A psicanálise é apenas um cômodo com um divã e uma cadeira, alguém que fala e alguém que escuta, e isso não mudou muito em cem anos… há algo de anacronismo aí. Há alguns psicanalistas que tentam modernizar isso e conciliar com as neurociências. Parece-me que há algo que encontra justamente a sua potência no anacrônico…
Conheço alguém que faz análise por Skype [risadas].
Sim, há muitos…, mas em psicanálise há algo que vai contra o tempo, você não acha?
Sim. De qualquer forma, não foi a psicanálise que inventou o anacronismo. Já está na sua biblioteca: se você coloca um livro de Platão ao lado de um de Deleuze, está em pleno anacronismo, mas assim funciona o pensamento. Tudo funciona assim: colisões e conjunções de tempos heterogêneos. Uma imagem é isso: uma colisão, uma confrontação, uma conjunção de tempos heterogêneos. Nunca há um tempo, sempre há vários tempos, como na música. O tempo não é um dado unitário nem homogêneo, o tempo é um dado plural e heterogêneo.
Para que precisamos das imagens? Você dizia no começo que há algo que transcende todas as civilizações e todos os tempos na produção de imagens… Por que você acredita que a espécie humana produz imagens?
Você está me propondo uma pergunta como se fosse para alguém mais sábio do que eu, ou para alguém… não sei…, você está me propondo uma pergunta como a um “amo”… sua pergunta é muito radical!
Me conformo com fragmentos…
Antropologicamente constato, simplesmente. Não posso dizer o porquê, não sei. Sou um empírico, não faço ontologia, eu descrevo do modo mais delicado possível, sou o que Deleuze denominava um “empírico outro”, não um empírico raso, mas a dimensão empírica é muito importante para mim, o eminente, e não o transcendente. Não posso dizer o porquê do fato de que os humanos façam imagens, os humanos fazemos imagens, fazemos gestos. Por que fazemos gestos? Já é imenso observar como os humanos fazem gestos, isso me interessa. Como fazemos gestos e imagens, mas o porquê de fazermos gestos é ao mesmo tempo como abrir uma porta já aberta, é a evidência, todos os humanos fazem gestos. E, ao mesmo tempo, uma pergunta extremamente complexa sobre por que, quando falo para você, preciso fazer gestos, falamos todos com os nossos corpos. Por que os homens falam? Você acha que Freud em algum trecho nos explica por que os homens falam? Não! É com o que nós fazemos da palavra que Freud ou Lacan trabalham. Mas o porquê é uma pergunta grande demais para mim, não posso responder isso e até diria que não me interessa, a pergunta do por que é quase teológica.
E você é um homem de sacrilégio…
[risadas] Eu sou um homem de sacrilégio.
E que impressão você tem frente a sua própria imagem? Quando você se olha em um espelho ou em uma fotografia…
Mmm… não gosto em absoluto. Posso eventualmente escutar um programa de rádio onde escuto a minha voz, eventualmente. Posso ver um filme onde estou, não gosto em absoluto. Mas isso é muito banal, vejo coisas das que não gosto… e, na minha idade, o assunto do envelhecimento, da morte. A imagem que vejo de mim me coloca frente a esse assunto. Então, melhor ver imagens mais belas de outras pessoas.
Vou dizer algo para você, perguntou-me: qual é a sua relação no que diz respeito à sua imagem, em especial, frente ao espelho? Então, eu respondo um pouco como posso, é uma pergunta na realidade muito complexa, muito extensa e respondo com o envelhecimento, com a morte, o assunto do narcisismo… Mas uma resposta mais interessante seria dizer: olha, cada vez que eu vou a um local novo, por exemplo, este hotel, evidentemente no banheiro há espelhos. Cada vez que eu vou a um novo local, o espelho me devolve uma imagem completamente diferente de mim, é muito interessante. Vem do fato de que nenhum espelho se parece, nenhum espelho é igual, não são o mesmo. A luz dirigida ao espelho não é a mesma que no meu próprio banheiro. O que é interessante, se eu me olhar no espelho deste hotel, é ver em que ponto a minha imagem é diferente aqui em Buenos Aires do que na minha casa em Paris. E é sempre uma experiência desagradável. Mas o que é interessante nessa experiência desagradável é que eu percebo que nenhum espelho é igual a outro. Apesar de que nós imaginemos que um espelho é neutro, isso é absolutamente falso, isso diz algo sobre a imagem.
A próxima vez que você for a Paris, a um hotel ou à casa de um amigo, vá ao banheiro e vai ver que não tem o mesmo rosto [risadas], você é um pouco mais gordo, um pouco mais… não é igual… sua pele não é igual, isso vem da qualidade do espelho e principalmente da iluminação. Você está acostumado não unicamente com a imagem do seu espelho, e sim com esse espelho e com a iluminação do seu banheiro cotidiano.
Luis González Palma tem uma série de fotos de cegos. Na literatura está Saramago (1995/2010) e o seu Ensaio sobre a cegueira, Sábato (1968) e o Informe sobre cegos, de Borges nem falar… Também a figura de Tirésias, que era vidente e cego… como você vê isso que se vê quando fechamos os olhos?
A palavra “imagem” atravessa todos os estados possíveis até quando dormimos, quando temos os olhos fechados. Os sonhos são lembranças de imagens, são imagens. Então, essa palavra atravessa diferentes estados, incluído esse de ter os olhos fechados. Quando nós fechamos os olhos, vemos coisas. Não sei o que acontece com um cego, que não vê a realidade externa, não sei qual será a sua experiência visual, incluída a dos olhos fechados, porque há passagens de cores, quando nós fechamos os olhos vemos coisas: agora, por exemplo, fecho os olhos e vejo o que chamamos fosfeno. Ou quando você recebe um golpe na cabeça e vê estrelas, isso são fosfenos. Para mim, as imagens começam ali, começam com os olhos fechados, o reinado da imagem começa quando você tem os olhos fechados, depois continua além disso. Mais uma vez estamos frente à diferença entre olhar e ver: eu vejo o seu computador, ele está na minha frente, mas olhar é completamente outra coisa. Nós nos olhamos, o olhar é também o resultado do que estamos nos dizendo, da situação, e o olhar está em obra inclusive quando você fecha os olhos, isso o diz Lacan. Quando diz que no sonho a função do olhar está ao extremo da sua potência, é magnífico. Quer dizer que para olhar bem um quadro é preciso vê-lo sonhando.
Há diferença entre ver e olhar, como a existente entre ouvir e escutar… Há algo para você que permita o olhar, e não a escuta? E, ao mesmo tempo, há algo que possibilite a escuta, e não o olhar?
Sim, eu diria que não devem ser separadas, mas ao mesmo tempo na experiência que frequentemente temos, por exemplo, tenho uma experiência muito banal: com frequência quando me apresentam alguém, eu o olho e de golpe não escuto o seu nome, não escuto nada. Então, escutar e olhar pertencem à mesma antropologia, mas quando você escuta mais, olha menos, e ao revés. Com frequência, quando eu olho para uma obra que me comove, diante de uma pintura, por exemplo, não tenho nenhuma palavra, não me surge nenhuma palavra. Isso não quer dizer que esteja longe da palavra, isso quer dizer que é preciso encontrar novas palavras para poder expressar essa experiência.
[1] Didi-Huberman, G. (2005). Gestes d´air et de pierre: corps, parole, souffle, image. Paris: Les Editions de Minuit.
[2] Nota do entrevistador: literalmente, “mestre do pensamento”. Tentei preservar algumas características do diálogo como as digressões, os esquecimentos, o humor e os mal-entendidos que aproximam esta conversa de uma conversa na qual a coisa psicanalítica não esteja ausente. E aqui há um efeito da má escuta da minha parte que, no entanto, propicia um desdobramento luminoso em GD-H. Pois o sentido que eu dei à pergunta sobre se ele se considerava um maître à penser não incluía a conotação que essa frase tem em francês, onde acarreta certo modo de submissão por parte dos discípulos a um mestre que não tolera a divergência do seu próprio pensamento.
Entrevista realizada por Mariano Horenstein, entre Paris (2016) e Buenos Aires (2017). Tanto a versão oral do texto como a tradução do francês foram feitas por Laura Verissimo de Posadas e Gabriela Levy.