Corpo

Volume 14, nº 1, ano 2016
Corpo

Habeas corpus 

A uns 300 ou 400 metros da Pirâmide me inclinei, peguei um punhado de areia, deixei-o cair silenciosamente um pouco mais adiante e disse em voz baixa: “Estou modificando o Saara”1N.T.: Tradução de Jahn; Borges, J.L. (2010). O deserto. In Jahn, H. (Trad.), Atlas. São Paulo: Companhia das Letras.
Jorge Luis Borges

Além das ressonâncias jurídicas, que a vinculam com tentar preservar o direito à vida, à liberdade e a ser ouvido pela Justiça, a expressão latina habeas corpus significa algo como “que tenhas seu corpo”. Parece algo óbvio, embora talvez não seja tão óbvio. 

É óbvio que quem se deita em um divã coloca ali seu corpo, e a psicanálise surgiu justamente porque alguém se permitiu ouvir o que esse corpo – o da histeria, para mais dados – tinha a dizer. Ao contrário do que se poderia pensar, ainda quando por momentos sua presença pareceria reduzir-se a uma voz fora do campo do olhar de seu paciente, os psicanalistas também temos um corpo.  

Em relação ao corpo, diferentes figuras de psicanalista podem ser catalogadas: desde o precursor, Charcot, que tocava as zonas histerógenas para desencadear ataques clonados, até o psicanalista contemporâneo, que apenas roça o corpo de seu paciente com um cumprimento. Se a psicanálise se define de algum modo em relação ao corpo, é a partir de uma exclusão: em seu consultório se fala do corpo, se ouve o corpo, mas não se manipula o corpo, não se acaricia, nem se explora semiologicamente. Ainda que a angústia aconteça no corpo ou uma interpretação que acerte na mosca, o toque, ainda quando quem ouve sinta um cansaço corporal repentino após ouvir certos discursos, ou seja, embargado por emoções que o ­corpo experimenta. A relativa exclusão do corpo da nossa prática não faz outra coisa senão pôr o corpo em relevo, como a sexualidade, que também faz parte do corpo. Não fazemos outra coisa senão falar sobre isso. 

Pode-se pensar em diferentes modos de relação com o corpo por parte do psicanalista, em um leque que vai do psicanalista leitor de hieróglifos criptografados no corpo de seus pacientes, o psicanalista que decifra corpos como o de El hombre ilustrado de Bradbury, até o psicanalista que, trabalhando como um antropólogo forense, identifica restos, os exuma e restitui identidades perdidas. 

Falar do corpo implica também explorar o modo com que o corpo infiltra numerosos campos de conhecimento. A linguagem dá conta disso, nada parece fugir da sua ambição nomeadora: corpo clínico, corpo de delito, corpo da nação, corpos celestes, corpo a corpo, corpo de Cristo, corpo anatômico, corpo próprio ou corpo estranho… Falemos de tipografia ou arquitetura, de corporações ou de medicina, de química ou de religião, precisamos da noção de corpo. 

Algumas, apenas algumas delas, são as dimensões do corpo que exploramos no presente número de Calibán. Por um lado, através da seção Argumentos e dos textos doutrinários escritos por psicanalistas da região; entre eles, os artigos premiados este ano pela Fepal. Por outro lado, no Dossiê, onde interrogamos o corpo sob perspectivas tão heterogêneas como a antropologia, a coreografia ou o urbanismo. A cidade, o território da prática analítica, também tem um corpo. E, fora desse corpo, Extramuros, acontecem coisas. Na seção que possui esse nome, apresentamos uma experiência comovente do que acontece quando a psicanálise sai dos nossos consultórios. Trata-se de um evento – organizado em São Paulo pela Diretoria de Comunidade e Cultura da Fepal – com um nome sugestivo: Psicanálise a céu aberto.

Outras duas seções, Clássica & Moderna e De Memória, nessa ocasião também se situam extramuros – desta vez, da Fepal/IPA –, ao traçar os perfis de Silvia Bleichmar e Oscar Masotta. Esses dois autores, generosos com o conhecimento que transmitiam, são referências inevitáveis, junto a muitos outros de intramuros, para os psicanalistas latino-americanos. O fato de incluirmos livres pensadores sem que sua filiação institucional seja um obstáculo é uma colocação em prática do espírito livre pensador, tanto de Calibán quanto da instituição que representa. 

Número após número, continuamos fazendo a crônica das Cidades Invisíveis da América Latina. Nesta ocasião, Lima, a modo de boas-vindas para a nova gestão da Fepal. 

Tanto em Argumentos quanto em Vórtice, onde propomos desta vez uma discussão sobre a supervisão psicanalítica, publicamos não somente contribuições de destacados analistas latino-americanos, mas também contribuições de analistas em formação.  Temos a gratidão, especialmente, de publicar as ideias daqueles que estão se formando ou que acabam de se formar em nossos institutos, após terem sido integrados ao staff da revista.

Em Textual publicamos um fragmento do diálogo que teve mais de um mês de duração com o escritor mexicano Mario Bellatin. A conversação girou majoritariamente em torno do corpo e de psicanálise. Ao atender a suas ideias, não é nossa intenção considerá-lo – nem a ele mesmo nem a sua obra – como um caso de estudo. Suas histórias, pronunciadas por alguém que já passou um bom tempo no divã, que resistiu inclusive a experiências controversas e que ainda tem desejos de reincidir, permitem que escutemos e pensemos, deixando em suspense nossas certezas e nosso instrumental teórico. 

Em O Estrangeiro publicamos “O corpo como evidência”, um texto cativante de uma antropóloga forense. O local de onde esse texto foi fabricado não é uma mesa de pesquisa acadêmica, e sim uma trincheira, uma das que se cavam em meio mundo para desenterrar os ossos massacrados e escondidos, ou o necrotério onde são identificados. A autora nos traz assim um testemunho próprio de outra dimensão do corpo, o daqueles aos quais nenhum habeas corpus foi reconhecido.

O corpo de Calibán

Qualquer pessoa que lendo estas linhas tenha a revista em suas mãos saberá, com certeza, que Calibán, como os vinhos de boa cepa, tem corpo: é um volume, pesa, suas páginas são de uma textura e uma gramatura determinadas que diferem das de suas capas desdobráveis. Não é o mesmo ler em papel ou ler no cristal líquido de uma tela, como não é o mesmo ouvir uma voz ao telefone ou ouvi-la frente a frente com quem fala, como não é o mesmo o amor epistolar ou o sexo virtual em relação às suas contrapartidas presenciais. Como todo corpo, é uma promessa de prazer compartilhado. 

Com Calibán tentamos fazer de cada número um corpo que gere vontade de acariciar, um corpo que faça a nossa mente mais permeável às ideias que contém; tentamos fazer com que o ato da leitura recupere o erotismo que inunda os consultórios analíticos, onde não se faz outra coisa senão falar sobre amor. Para isso, contamos com o trabalho dos artistas que, em Calibán, não são simples ilustradores, e sim constituem a vanguarda de nossa exploração. Neste número deixam sua impressão Tatiana Parcero e Eduardo Stupía, junto aos nossos habituais companheiros de estrada Daniel Villani e Lucas di Pascuale.

Como em toda corporação, como em toda disciplina, em psicanálise abundam os discursos autocomplacentes. Cada um costuma se ver refletido em seu ideal, e esse fenômeno – ainda que a psicanálise nos ofereça ferramentas para compreendê-lo e para moldá-lo – tem consequências nos psicanalistas, nas instituições analíticas e também em suas publicações.

Com Calibán, como editores, almejamos fazer uma revista que seja melhor do que nós mesmos. Não somente no sentido habitual, o que já é moeda corrente – embora seja certo –, o de admitir que um grupo capaz de sinergias produz algo melhor do que faria a somatória de suas partes. Em Calibán almejamos inclusive algo mais, e é produzir uma revista que não reflita de modo autossatisfatório – autoerótico, talvez, ou melhor, narcisista – a instituição que financia sua edição e nutre seus conteúdos, a Federação Psicanalítica da América Latina. Por ser uma publicação oficial, a tentação de se tornar um folhetim de novidades ou um porta-voz do politicamente correto em termos institucionais é grande. Ao mesmo tempo, a extrema diversidade das sociedades que a compõem e as coordenadas de seu nascimento permitem que Calibán escolha uma política editorial diferente. Uma política que reúne tradição e invenção, mas para produzir algo melhor do que nós mesmos. 

Melhor do que nós mesmos implica fazer uma revista mais engajada com o desejo do que ainda está por vir, do que com a satisfação do já feito, mais interessada em inventar um futuro do que em mostrar as conquistas do passado.  Melhor do que nós mesmos, então, pois refere-se mais aos nossos desejos do que aos nossos ideais. 

Falar do corpo aqui é sem dúvidas falar do corpo sexuado, mas também é falar do corpo que envelhece, do corpo perecível.  

Tudo o que fazemos, esta revista inclusive, é uma corrida contra a morte. É impossível falar do corpo sem ter no horizonte o fim que nos acomete e que dá sentido retroativo às nossas ações. Estávamos encerrando este número de Calibán quando fomos surpreendidos por duas mortes, a de Horacio Etchegoyen, primeiro presidente latino-americano da IPA e uma pessoa querida para muitos, e a de Abbas Kiarostami, o grande cineasta iraniano, que sentia muito entusiasmo pela psicanálise. De fato, sua morte aconteceu em meio a um diálogo que mantínhamos com ele às vésperas de exames médicos que, ainda que previstos como de rotina, anunciariam o desenlace. 

A existência deste oitavo número de Calibán é uma batalha ganha contra a morte. São poucas as publicações que conseguem atravessar o território minado dos primeiros números, e não são poucas as dificuldades que Calibán precisou enfrentar. No terreno editorial há batalhas microscópicas que têm a ver com o modo em que entendemos e pretendemos pensar a nossa disciplina, e a nossa aposta é clara: aberta a todos os modos possíveis, permeável a múltiplos formatos, em diálogo com a cultura e com a ciência, em uma linguagem contemporânea e não anquilosada. 

O programa que temos sustentado, pela equipe editoral, encontra, claramente, interesses opostos; rivalidades imaginárias entre publicações, sociedades ou inclusive países; a inércia burocrática e as mesquinharias, as misérias e os discursos duplos de alguns, para não falar das nossas próprias dificuldades e limitações. Porém, contamos também com a coragem e a imaginação de várias pessoas, o apoio irrestrito de figuras centrais da psicanálise e da política institucional latino-americanas; o entusiasmo de um crescente número de leitores; a colaboração dos autores, dos artistas, dos nossos entrevistados; e uma equipe, uma máquina editorial, que aprende com sua experiência e continua se impondo objetivos sempre mais ambiciosos. 

Não há garantias, claro. Os corpos morrem. E essa é uma das razões pelas quais propomos deixar as marcas do nosso entusiasmo em vida. Calibán é uma delas. Kiarostami, muito próximo de Freud nesse ponto, nos dizia na entrevista que ia ser publicada na nossa revista, mas que foi interrompida: 

Sabe, eu sou uma pessoa muito conservadora em muitos sentidos, mas, quando se trata de fazer filmes, poesia ou fotografias, sou implacável!2Freud, em sua carta a Pfister de 5 de junho de 1910, sugeria que um analista “precisa se tornar um mau sujeito, transformar-se, renunciar, comportar-se como um artista que compra pinturas com o dinheiro da despesa de sua mulher, ou que faz fogo com os móveis para que seu modelo não sinta frio. Sem um pouco dessa qualidade de malfeitor, não se obtém um resultado correto”; Freud, S. e Pfister, O. (1966). Correspondencia 1909-1939. México, D. F.: Fondo de Cultura Económica. Converto-me em um aventureiro e quero experimentar coisas novas, às vezes contra o recomendado pelo senso comum. 

O diretor iraniano nos contava sobre sua fascinação pela psicanálise, dizendo que sempre tinha procurado estar em contato com analistas, e inclusive que a sua ideia de fazer um filme no qual o protagonista fosse um psicanalista era uma original desculpa para estar ainda mais perto… E com uma sonora gargalhada, acrescentava: “E finalmente, não fazê-lo, e mudar a narrativa para eliminar o psicanalista, foi provavelmente uma resistência da minha parte”.

Falando desse filme, que deveria ter tido um psicanalista no papel principal3Comentário sobre Ten, ver: Rosenbaum, J. e Saeed-Vafa, M. (2013). Abbas Kiarostami. Villa Allende: Los Ríos., Kiarostami propôs uma definição de sua tarefa como diretor de cinema: “Se alguém me perguntasse o que fiz como diretor no filme, diria que ‘nada, porém, se eu não existisse, esse filme não existiria’”. Essa descrição cabe perfeitamente para descrever o trabalho de um psicanalista, e também o nosso trabalho como editores. Como também nos cabe seu implacável espírito aventureiro, tão próximo ao de Freud e seu argumento para um comportamento de malfeitor.  

Cartografia deste céu

Enquanto escrevia este editorial, além das desgraçadas notícias necrológicas, tive a oportunidade de assistir um filme. O documentário –era disso que se tratava– chegou a mim através da minha amiga Raya Zonana, búlgara emigrada ao Brasil. O filme tem um nome maravilhoso: Nostalgia de la luz [Nostalgia da luz], e foi rodado em Puna de Atacama por um diretor chileno. Estamos acostumados a esse tipo de tráfegos no corpo cortado da América Latina, e também em Calibán. Como quando entramos em contato com Tatiana Parcero, a artista encarregada da capa deste número, mexicana e residente em Buenos Aires, graças a um amigo guatemalteco. Às vezes precisamos da distância para apreciar o que está bem perto. Como quando foi necessário um entusiasta leitor italiano –Stefano Bolognini– para ter finalmente a versão própria de Calibán em inglês. 

No filme, Patricio Guzmán, seu diretor, traça um paralelo entre as estrelas e os corpos dos desaparecidos chilenos. Seus corpos foram enterrados em covas comuns no deserto, mas depois esses restos foram desenterrados por retroescavadeiras e jogados talvez ao mar. O diretor apresenta ali uma metáfora sobre a memória, ao mostrar como o cálcio dos fragmentos de ossos caídos das retroescavadeiras é o mesmo cálcio das estrelas. Somos feitos da mesma matéria que as estrelas. As mães rastreiam o deserto do Atacama ainda hoje, tentando nomear seus filhos desaparecidos, enterrar nem que seja um fragmento de seus ossos. Investigam, apesar de si mesmas, o que não se sabe. O que ainda não se sabe ou o que é impossível saber, essa área de pesquisa é a que habitamos também os psicanalistas junto aos arqueólogos, os astrônomos ou os antropólogos forenses. 

Por isso, esta revista – na qual hoje tratamos dos corpos – no próximo número irá investigar o que não se sabe. Continuamos espargindo assim um programa editorial que pareceria ter alguma coerência retroativa, no qual se alternam temporadas em que os analistas nos encontramos para pensar sobre certos assuntos – Tradição & invenção, Realidades & ficções, Corpo, as Ferramentas do analista ou a Intimidade – com outros nos que propomos uma agenda de assuntos próprios – Tempo, Excesso, Margens, O que não se sabe.

Esse é o nosso modo de construir o mapa do céu psicanalítico, um céu que nos acolhe a todos, mas que se desenha de um modo peculiar sobre os desertos, as montanhas, as florestas ou as costas da América Latina. Esta série dos primeiros dez números de Calibán poderia ser lida como uma cartografia. Claramente, não é a única possível. Felizmente, o céu admite mais de um mapa.  

Junto às minhas parceiras de viagem, Laura Verissimo, Raya Zonana, Andrea Escobar Altare, Lúcia Palazzo e uma equipe de entusiastas colaboradores que se entregam totalmente no cumprimento dessa tarefa, com cada número de Calibán tentamos ir um pouco mais longe nessa travessia, atravessar tempestades de areia, modificar o deserto.  

Mariano Horenstein
Editor-chefe – Calibán – RLP