Entrevista en Porto Alegre

Entrevista Mariano Horenstein[1] e Bernardo Tanis[2]

Entrevista concedida pelo Dr[MH1] . Mariano Horenstein e pelo Dr. Bernardo Tanis em 11 de maio de 2012, na Sala Santiago Wagner, à comissão editorial da Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre: Cátia Olivier Mello, Luisa Rizzo, Vânia Dalcin, Lúcia Thaler, Mariano Horenstein, Eneida Iankilevich, Rosane Schermann Poziomczyk (coordenadora), Bernardo Tanis, Tula Bisol Brum e Suzana Deppermann Fortes.

Revista – É com grande satisfação que entrevistaremos hoje os convidados do Simpósio da Infância e Adolescência da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.

Bernardo Tanis é psicanalista da Sociedade Brasileira de psicanálise de São Paulo, tem muitas publicações e é editor da Revista Brasileira de Psicanálise. Mariano Horenstein faz parte da Associação Psicanalítica de Córdoba e atualmente editor da Revista Caliban Latinoamericana de Psicoanálisis[MH2] . Por isso julgamos ser este um momento precioso para   podermos trocar nossas experiências em editoria.

Mas, antes de mais nada, para conhecê-los melhor, gostaríamos que nos falassem sobre suas respectivas trajetórias pessoal e profissional, formação analítica e principais influências, psicanalíticas e não psicanalíticas, que contribuíram para a maneira como ambos compreendem a mente humana.

MH – É difícil falar de nossa biografia quando achamos que o melhor é o que ainda está por vir. Eu posso contar como me aproximei da psicanálise. Acho que foi essa a pergunta. Na verdade, me aproximei a partir do lugar mais analítico, a partir de um divã. Primeiro, comecei a fazer análise e acabei transformado num analista. Acho, pois, que há uma lógica bem analítica que se apresenta dessa maneira. No meu caso, estudei psicologia e depois fiz a formação psicanalítica na Associação Psicanalítica de Córdoba. Mas o início de tudo foi minha experiência clínica na qual eu era o analisando.

Depois da faculdade, fiz uma residência em saúde mental em dois[MH3]  hospitais. Tive a possibilidade de uma experiência clínica desde muito cedo, na faculdade, porque trabalhava com pacientes em clínicas e instituições. Isso me permitiu compensar algo que, na Argentina, é um grande inconveniente: as faculdades de psicologia são muito ancoradas no teórico. Não temos essa proximidade com o sofrimento humano que têm os que vêm da medicina. Estes até podem sentir falta de uma série de conceituações teóricas sobre a mente humana, mas têm essa proximidade com o sofrimento e com a morte que acho que marca muito a clínica de alguém. Eu procurei isso, em algum outro lugar, enquanto estudava psicologia.

Quanto às principais influências, minha maneira de pensar a psicanálise pode e deve nutrir-se de muitas coisas. Sinto um certo tédio ao pensar num caminho de formação que abranja somente a bibliografia psicanalítica. Acho que isso leva a certa esterilidade. Então, meus caminhos de aprendizagem são, em primeiro lugar, a clínica e uma certa atitude de perplexidade diante da clínica (a posição do “não entender”). Quando eu sinto que entendo muito, já fico preocupado.

Por outro lado, no estudo da psicanálise, eu me interessei fundamentalmente pela linha freudiana e pela escola francesa de psicanálise. Freud e Lacan são os autores que mais leio.  Além disso, tenho a concepção de que a cultura não é uma espécie de atividade secundária para um analista, ou um departamento acessório numa instituição analítica, a psicanálise é uma atividade da cultura e para mim é difícil pensar na formação de um psicanalista sem ler, sem ir ao cinema, sem viajar, sem se colocar nesse tipo de situações que não vejo como um enfeite, mas como a medula do trabalho analítico.

BT – É curioso porque o Mariano e eu nos conhecemos há relativamente pouco tempo, mas temos certas coincidências bastante grandes, talvez não no começo, mas na forma de pensar uma série de questões. Eu também me aproximei da psicanálise não diretamente do divã, mas a partir de uma angústia de mudança, de uma vontade de mudar.

Nós estamos falando aqui no Simpósio das histórias contadas, de como nos constituímos a partir de algumas histórias. Eu comecei minha história profissional estudando química. Tornei-me químico de um modelo diferente, com certas expectativas. Mas isso já acontecia bem antes, desde o colégio, na Argentina, onde a gente trabalhava com grupos operativos, Lia Bleger, com dezesseis anos de idade. E isso deixou uma semente, uma marca, esses traços que a gente tem que trabalhar em algum momento.

Aí você vai para o divã e começa a pensar e a questionar, de modo que foi quase natural essa aproximação. Depois vim para o Brasil fazer a faculdade de psicologia e me pus a estudar psicanálise. Comecei a atender e a iniciar a minha formação, Inicialmente não na Sociedade de Psicanálise, mas no Sedes Sapientiae, em São Paulo; depois me aproximei do núcleo de psicanálise de crianças e, como já trabalhava com crianças, me envolvi muito. Uma coisa interessante é que a questão lá funcionava da seguinte forma: você não ensina porque sabe, mas ensina porque tem vontade de aprender. Isso te mobiliza a estudar. Na sequência fui sentindo necessidade de aprofundar mais a formação, de me desenvolver mais. Foi nesse momento que procurei a Sociedade de Psicanálise de São Paulo.

Mas, nesse meio tempo, entre uma coisa e outra, num momento em que a Sociedade de São Paulo estava fechada, me interessei também pela ideia de que a psicanálise pudesse dialogar com outros campos do conhecimento. Ou seja, a questão da cultura sempre foi para mim um elemento central. Não consigo conceber a psicanálise desvinculada da cultura. E não como  um enfeite ou erudição. Mas a cultura como funcionava para o Freud, como uma das matrizes fundadoras do pensamento psicanalítico e também uma das matrizes que nos constituem como pessoa. Então fui para a universidade  fazer mestrado e doutorado, buscando sempre um diálogo de interface dos temas psicanalíticos com os temas da cultura. Ou seja, se vamos estudar a temporalidade em psicanálise, é importante saber como é que um historiador pensa a temporalidade, como   é que um físico pensa a temporalidade. O que podemos aprender com eles, o que podemos lhes oferecer? Enfim, esse foi o caminho que segui. Surgiram também possibilidades, convites e a coisa foi se aprofundando, tanto na análise com crianças como nessa interface com a cultura.

Em termos dos autores que nos marcam, sempre fui muito apaixonado pelo próprio Freud;  dizer isto não é nada original, mas penso que é um dos autores que, além de ser o fundador, é o quem tem a maior abertura, essa possibilidade, sempre, de você encontrar, nos momentos de impasse e angústia, algo que o estimula a pensar. Ao mesmo tempo ,gosto de estudar os autores franceses e gosto muito do pensamento de Winnicott no sentido de colocá-lo a dialogar com os outros pensadores. Hoje em dia, muitas vezes as pessoas colocam Winnicott num paradigma um pouco fora do campo psicanalítico geral. Eu o vejo muito em diálogo com os outros autores, num trabalho muito próximo do trabalho de André Green, de Roussillon,, de autores com os quais me sinto muito confortável em pensar, e que me ajudam também na maneira como entendo o trabalho clínico.

Revista – Gostaríamos, então, que nos falassem da sua experiência como editores em importantes revistas de psicanálise. Especialmente sobre as repercussões dessa função na vida profissional.

MH – Minha experiência como editor tem basicamente dois pilares. Há um terceiro que é participar da direção de uma nova coleção de livros de psicanálise[MH4] .  Mas, quanto às publicações, um dos pilares é a Revista Docta da Associação Psicanalítica de Córdoba, uma revista que aprecio muito, não somente porque faço parte dela desde sua fundação, mas porque em Córdoba temos uma sociedade relativamente pequena, o que, para algumas coisas é muito problemático, mas, para outras, é maravilhoso porque não precisamos lidar com o peso de uma tradição. Às vezes é complexo mudar a tradição em alguns hábitos de publicação. Nós pudemos inventar uma revista que é nova, que dá vontade de ler: o que  recebemos dos leitores são demonstrações de agrado. Não tem assinatura compulsória, pode-se resolver não recebê-la. É uma revista que fazemos pensando no leitor, uma revista que gostaríamos de ler se fôssemos um leitor. Tem, por um lado a clínica, abre espaço para diferentes correntes do pensamento, e ao mesmo tempo abre espaço para a cultura, espaço onde os psicanalistas escutam algo que vem de um espaço mais estrangeiro. Durante todos os anos que trabalhamos nesse projeto, tem sido muito prazeroso; montamos uma equipe, e agora parte dessa equipe de trabalho dá continuidade à tarefa. Eu já não estou mais na direção.. Neste momento estou trabalhando na montagem, juntamente com um grupo grande de colegas, da Revista Latinoamericana de Psicoanálisis, que está sendo praticamente refundada, por isso o nome Caliban. Acrescentamos um nome à Revista Latinoamericana de Psicoanálisis, que existe há vinte anos, mas com uma publicação um pouco errática, mudando o formato, a periodicidade, o idioma. Agora, com um projeto da atual direção da FEPAL, os estatutos foram reformulados e a revista passa a ter autonomia para que possa crescer. Tem um corpo editorial que vai além de cada comissão diretiva da FEPAL. Esta tem uma gestão de dois anos e a da revista de seis anos. E irá se renovando por terços.

Então, a ideia é que a revista da FEPAL tenha autonomia e que haja um crescimento da publicação.  Há poucos dias apresentamos um projeto aos presidentes das Sociedades Latino-americanas – a Viviane[MH5]  estava lá – em Montevidéu. Apresentamos o estado atual do projeto. Não sei se é o momento certo para contar isso a vocês…

Revista – Sim.

MH – A revista vai ter algumas sessões permanentes e algumas transitórias. Uma das  permanentes é a chamada sessão Argumentos, que respeita mais os cânones tradicionais das revistas científicas. Ali haverá trabalhos recebidos, avaliados em duplo cego, ancorados tematicamente. Ou seja, cada número será temático. Haverá uma particularidade na interface gráfica da revista, isto é, linhas de ambos os lados convidando o leitor a escrever na revista, questionar, fazer associações, riscar. Queremos uma revista na qual se escreva e que não fomente nenhuma leitura acrítica. Não queremos que os leitores leiam dogmas. No primeiro número, essas linhas estarão ocupadas por comentários feitos pela Comunidade[MH6]  Latino-americana sobre os trabalhos pré-publicados para o congresso de São Paulo. A revista será lançada lá com o tema do congresso que é Tradição e invenção[MH7] .

Depois haverá outra sessão chamada O estrangeiro, onde serão publicados ensaios escritos por alguém que não é psicanalista sobre o tema dessa edição.  Na primeira edição publica-se um ensaio de uma filósofa sobre Tradição e invenção. No segundo ou terceiro número – ainda não sabemos bem[MH8]  –  sobre o Tempo, Bernardo será um dos autores. Nessa sessão, constará o trabalho de um físico (ou matemático – não lembro[MH9] ) sobre o tema do tempo. Um dos números será sobre o Excesso; então procuraremos alguém que possa dizer algo sobre o excesso e que trabalhe – quem sabe? – com o corpo. A ideia é procurar uma visão que seja estrangeira à psicanálise.

Depois, há outra sessão que é uma das que mais me agrada e que se chamará Cidades imaginárias ou algo desse tipo e que vai ser de crônicas. A ideia é fazer – edição a edição – um percurso pelas cidades analíticas latino-americanas e ler um pouco sobre como é cada uma. Não se trata de um trabalho científico, mas crônicas nas quais a intenção é aprender como se desenvolve a prática psicanalítica, por exemplo, em Caracas. Ou em São Paulo, ou em Córdoba, ou em Buenos Aires, a partir do nível do cotidiano, dos fatos. Já temos alguns trabalhos para os primeiros números, belíssimos, extremamente interessantes. Acho que será uma das primeiras sessões a serem lidas.

Revista – E escrito por psicanalistas?

MH – Sim, escrito por psicanalistas, mas nesse tom, no tom de crônica.  E depois, em cada número, haverá um Dossiê sobre disciplinas ou temáticas alheias à psicanálise. Há dois espaços onde entra o externo à psicanálise:, um é a sessão O estrangeiro,  o outro é o Dossiê.  A regra nessa sessão é que o psicanalista não escreva. No primeiro número, o Dossiê será sobre arte contemporânea, porque a revista será lançada quando ocorrer a Bienal de São Paulo. Então, haverá ensaios e entrevistas com artistas, curadores, críticos culturais. Esse número se organiza a partir de duas perguntas. Uma é o que podemos aprender, nós, psicanalistas, com a arte contemporânea. É a antípoda da psicanálise aplicada à arte. Ou seja, a ideia não é o que os psicanalistas podem dizer sobre a arte, mas o que os psicanalistas podem aprender com a arte, já que, como diziam Freud, Winnicott, Lacan, os artistas sempre estão um passo à frente de nós. Então, o que podemos aprender do que está acontecendo na arte contemporânea? Quanto à segunda pergunta, o psicanalista que estrutura o dossiê vai considerar se o que acontece na arte, seja latino-americana ou mundial, serve como espelho para pensar o que acontece na psicanálise latino-americana em relação[MH10]  à  mundial.

Mas a revista também tem uma proposta política, no sentido de uma política científica forte e por isso o nome Caliban, um anagrama de Canibal, personagem de uma tragédia de Shakespeare que se chama A tempestade. Isso foi usado por vários pensadores latino-americanos para considerar um pouco como é a produção de conhecimento na América Latina em relação à produção nas metrópoles Nova York, Paris, Londres. Retomando Caliban, ele é o personagem da tragédia de Shakespeare que nunca aprende a falar bem o inglês, só o balbucia e aparece como o estereótipo de um selvagem horroroso, estuprador, que é como o nativo é visto pela Europa.

A ideia é usar esse nome ironicamente e fazer disso um produto, criar uma plataforma onde possamos discutir a psicanálise latino-americana. A revista, como objeto, vai ser muito bonita, com muito trabalho gráfico. Falando com Bernardo, dizíamos que, por exemplo, na Argentina, ignoramos quem é Fábio Hermann, só sei que é uma pessoa muito importante, mas sabemos quem foi o último discípulo surgido em Londres ou em Paris. E não sabemos o que está sendo discutido em Bogotá neste momento. Não existe uma revista que possa abrir espaço para esse debate. Por isso, por um lado, vamos debater entre nós e, por outro, queremos que a revista seja uma espécie de vitrine da psicanálise latino-americana para fora.  Terá duas versões, uma em espanhol e outra em português e também uma versão online em inglês.

Retornando ao nome Caliban, estes pensadores latino-americanos diziam: Caliban pode produzir conhecimento teórico ou está condenado a balbuciar, que é o que acontece com o personagem de A tempestade? Balbuciar, repetir uma coisa mimética do conhecimento que vem de Londres ou de Paris? A ideia é trazer uma resposta nesse sentido e incentivar a publicação de trabalhos originais, é fazer um levantamento do que pode haver de novo no pensamento atual, onde publicariam hoje Freud, Klein ou Lacan, se surgissem. Não seria no International Journal, por exemplo. Certamente, não. Na verdade, foram feitos testes sobre isso, contados pelas próprias pessoas do International Journal. Sabe-se, por exemplo, que já foram enviados alguns trabalhos – acho que de Bion, não? –  sem assinatura e houve o caso de um trabalho de Bion que foi rejeitado. E é lógico que isto aconteça, porque a estrutura de uma publicação com esses parâmetros científicos deixa fora a produção do novo e do original[MH11] . Ora, os pensadores que fizeram a psicanálise avançar sempre representaram certa ruptura, certa originalidade e certa multiplicidades de aportes. Isso cria dificuldades porque os parâmetros de avaliação sempre costumam ter alguma rigidez, mas a ideia é estarmos atentos ao novo.

Vou falar rapidamente sobre outras sessões. Há uma chamada Vórtice, como se fosse o olho de um furacão – é esse o significado de vórtice. Nela haverá espaço para os pontos conflitantes da psicanálise, pontos de debate. No primeiro número, montamos um tipo de dossiê sobre a transmissão da psicanálise. Haverá diferentes vozes: testemunhos, ensaios, dados históricos sobre a formação analítica em diferentes latitudes, como está sendo pensada agora na América Latina. Depois, haverá outra sessão chamada de Clássica e moderna, ou algo nesse estilo, onde teremos autores latino-americanos clássicos com uma visão contemporânea. Não tanto para fazer-lhes uma homenagem ou algo mais histórico, mas para tentar trazê-los para a contemporaneidade.

Revista – Acho que nós todos ficamos com muita expectativa, muita vontade de ler o Caliban. A frequência é anual?

MH – Três vezes por ano. O estatuto diz isso. A ideia é que seja uma revista indexada nos bancos de dados internacionais. Há uma série de exigências para isso.

Revista – Algo interessante para conversarmos aqui seria sobre a edição online (como o Mariano comentou da Caliban). Temos discutido muito, também, essa possibilidade. Como existe muito material clínico nos trabalhos, há divergências entre colocar ou não a nossa revista online em função do sigilo.  Quem sabe o Bernardo fala um pouco da sua experiência e inclui também a questão da edição online?

BT – Sim, eu acho que essa questão é super importante, mas contarei, antes, um pouco do meu percurso e depois abordamos essa questão, já que ela tem a ver com o que nós temos tentado fazer na Revista Brasileira. Minha primeira experiência começou com o Jornal de Psicanálise na Sociedade de São Paulo. É uma revista de psicanálise ligada ao instituto com a função principal de discutir questões ligadas à formação psicanalítica. A ideia é publicar trabalhos de membros filiados e de candidatos e discutir de forma bastante aberta e livre a questão da formação analítica porque, de algum modo, na Revista Brasileira ou em outras revistas que temos, isso não tinha muito espaço. Daí houve números temáticos que propunham discutir por que se estudam certos autores, qual a função da supervisão, problemas inerentes à supervisão, enfim, temas do dia-a-dia da formação analítica, com autores do Brasil e de fora.

Essa foi minha primeira experiência. Depois me ocupei da Revista Brasileira. E foi muito interessante porque, quando isso ocorreu algumas pessoas me falaram: “Você vai assumir a Revista Brasileira, Bernardo? É uma revista burocrática, institucional, é a revista da FEBRAPSI. Como vai ser?” Esta também era a minha ideia inicial, mas essa revista tinha um teor que foi mudando com o passar dos anos, já em outra gestões. O editor anterior a mim foi o Leopoldo Nosek, que tinha feito uma mudança significativa. Mas a minha ideia era valorizar a produção psicanalítica do Brasil porque eu tinha participado da diretoria da FEPAL, da organização do Congresso da FEPAL e via a dificuldade do pensamento psicanalítico brasileiro conquistar espaços de um modo mais direto. A intenção era, por um lado, ir construindo uma tradição de maior rigor na publicação, no tipo de textos que são publicados e, ao mesmo tempo, captar temas que estão no ar, que todo mundo discute no momento e fazer números temáticos, ter uma parte temática na revista que possa oferecer um espaço para esses temas.

Assim, por exemplo, um dos primeiros números que fizemos chamou-se Variações e fundamentos. Nós falamos sistematicamente, o tempo todo, sobre variações no modo de atendimento, fora o atendimento padrão. Mas o que as pessoas estão fazendo, de que modo se permitem fazerê-lo e que sentido dão a essas coisas? Fizemos então cartas convite para todos os analistas do Brasil. E isso resultou num número bacana.  Agora lançamos um número sobre a questão Ética na clínica. Ética em psicanálise também envolve questões muito significativas no dia-a-dia do analista, respostas que devem ser dadas e situações clínicas que se impõem ao analista, que se sente muito sozinho para pensá-las. Ou não as pensa muito num fórum coletivo, só numa supervisão ou na análise, mas não num debate mais amplo.

          Esse aspecto da revista é importante, o de captar temas. O outro, que tem a ver com o que o Mariano falava, é que a revista sempre teve uma marca,desde a gestão do Leopoldo, mas a ver com o espírito do Durval Marcondes (fundador da Revista Brasileira) e com a entrada da psicanálise no Brasil, entrada  esta relacionada com o modernismo; e revista, então, sempre foi muito ligada à cultura. A psicanálise, inicialmente no Brasil, esteve muito vinculada aos movimentos culturais. Depois, alguns grupos se vincularam mais à psiquiatria e às instituições psiquiátricas, mas pelo menos em São Paulo o vínculo com a cultura foi fortíssimo. Então   fizemos um número sobre o corpo e, na abertura do número, publicamos uma entrevista com uma coreógrafa e bailarina da companhia de dança de São Paulo falando da dança e do corpo e de que modo isso é vivido.

         Há alguns comentários numa sessão em que os psicanalistas dialogam com a entrevista, escrevem, comentam e também uma sessão de interface que foi ampliada e que não existia antes. Por exemplo, no número sobre Ética consta um texto de um médico sobre bioética, outro de um filósofo sobre ética e outro de um jurista. Ou seja, pretende-se que esse diálogo permanente se instale na revista. A ideia é basicamente esta: que a revista não seja só um espaço onde apareçam textos estritamente psicanalíticos, mas onde a psicanálise também dialogue com outros campos do conhecimento. E que seja um celeiro para que as pessoas se sintam estimuladas a escrever e a ler um pouco o que a gente mesma, no Brasil, produz.

Mas, sobre a questão específica da publicação online, organizamos no congresso brasileiro uma mesa redonda com todos os editores de revistas do Brasil. Isso foi a partir da percepção de que cada sociedade hoje tem uma revista ou mais do que uma. E cada novo grupo de estudo que nasce, a primeira coisa que faz é lançar uma revista. Temos dentro da FEBRAPSI umas quinze, e isso coloca uma questão importante:  há massa crítica para tantas revistas e tantos autores? Agora nasce Caliban, mais uma publicação interessante, fantástica, mas… Ou seja, repetindo, temos massa crítica para tudo isto?

Há, ao mesmo tempo, as pressões das indexações que nos levam à questão:  vamos fazer revistas online, publicá-las? Para que possamos entrar em certos organismos tipo Scielo e tal, a revista deve estar toda online. E não só isso, há exigências sobre o tipo de artigo, o tipo de padrão. Até que ponto é interessante para a psicanálise entrar nessa modalidade? Por um lado, quem escreve quer que seu trabalho seja divulgado. Não adianta fazer uma revista linda para ficar na prateleira. Por outro lado, que preço estamos dispostos a pagar? Se você diz para um analista que esse texto vai estar online, a quantidade de material clínico que ele vai introduzir mesmo com deformações é delicada, não? Isso pode inibir os autores. Por outro lado, pode ser interessante que a revista circule. Colocam-se questões difíceis de resolver,  questões éticas em jogo.

Daí o porquê do número sobre a ética, ou seja, no sentido de debater essas questões, pois não há respostas prontas. Parece-me que a conversa entre editores é muito importante para que possamos ir adiante. Uma das formas é nos juntarmos aos editores de revistas de psicanálise para pressionar os órgãos que fazem as indexações, por exemplo, a Scielo e outros dizendo-lhes: “- Olhem, talvez, para as revistas de psicanálise, possamos ter uma publicação online dos resumos e de alguns artigos,  não de todos, por exemplo”. Porque eles só aceitam assim: ou você tem tudo online ou não publica. Mas isso vai depender de que nós, editores, possamos nos reunir e chegar a algumas posições de consenso e que, de alguma forma, possamos dialogar com os órgãos que fazem tais indexações.

Revista – Até porque a psicanálise entrou na sociedade rompendo padrões estáticos. E se a gente, obrigatoriamente, tem que fazer todos os artigos no mesmo modelo, atendendo aos mesmos padrões, com evidências, não estaremos perdendo um pouco do caráter revolucionário, digamos assim, ou de ruptura da psicanálise? Nos submetemos para poder divulgar?

BT – As regras acadêmicas, não é? Ou de titulação, por exemplo. Para certos órgãos de indexadores o corpo editorial tem que ter no mínimo tantos autores. É uma exigência que parte da academia e que não respeita muito as instituições psicanalíticas. Por outro lado, as instituições psicanalíticas e os tempos foram mudando e já não somos tudo aquilo que julgávamos ser. A gente também deve começar a pensar em como dialogar e não ficar numa certa torre de marfim e pensar que somos imunes a tudo isso que está acontecendo no mundo. Ou seja, também temos que sair um pouco de nós e irmos para o outro. Nesse movimento,  acho que é possível encontrar um caminho em algum lugar.

MH – O assunto que o Bernardo aborda é muito complexo e não está resolvido.  Sempre há uma espécie de conflito entre a institucionalização e a psicanálise e o mesmo ocorre no campo da edição. Julgo muito bom estar indexado e participar dos debates da comunidade científica, sempre e quando não abandonarmos o terreno da psicanálise. É como o que se conta sobre Einstein explicando a teoria da relatividade. Já ouviram, com certeza. Alguém pede a Einstein que explique a teoria da relatividade. Ele explica uma vez, e a pessoa diz que não entende. Então ele torna a explicar de uma maneira mais simples, e a pessoa torna a dizer que não entende. Ele explica pela terceira vez de uma maneira ainda mais simples e a pessoa diz novamente que não entende. Ele torna a explicar e a pessoa diz: “- Agora sim, entendo.” Bem, mas já não é mais a teoria da relatividade.

Acho que há algo dessa ameaça pairando sobre as publicações analíticas. Se  assumimos o padrão de uma revista científica que poderia ser um jornal de psicanálise ou de dermatologia, ou ortopedia e traumatologia, desvirtuamos totalmente o que é a psicanálise, o que retoma o que falávamos no início sobre o lugar da cultura. A psicanálise não é uma especialidade médica. Acho que isso incide muito em como ela é pensada pelas publicações.  Esse será um ponto complexo.

De qualquer maneira, a publicação online, a digitalização é um processo inevitável e a forma de fazê-lo será negociada. Mas acho que ainda haverá, por muito tempo, um lugar para o objeto, para ter a revista nas mãos, poder tocá-la, apalpá-la, guardá-la na biblioteca,  colecioná-la. Na América Latina deve haver mais de trinta; há sociedades que não têm nenhuma, mas há outras que têm até três, mas que não circulam. Em geral são todas deficitárias[MH12] . Não sei como é a situação de vocês aqui. A maioria das revistas não gera o desejo de lê-las. Às vezes não gera sequer o desejo de retirá-la das instituições quando a entrega é compulsiva, juntamente com a parcela. Em algumas que conheço houve situações que beiram a paródia. Por exemplo, há instituições que têm problemas estruturais[MH13] , de estrutura do prédio devido ao peso das revistas acumuladas porque os sócios não as retiraram. Porque, pensem, edições grandes que começam a acumular várias centenas de quilos, número a número, acabam se transformando num problema.

E eis um ponto que vale a pena pensar: se vale a pena ter tantas revistas. É paradoxal pois estamos propondo uma revista nova. Mas acho que as revistas estão sendo pensadas mais em torno da necessidade dos autores de publicar do que da necessidade dos leitores de ler e da necessidade de novas ideias. Porque, na realidade, há muito material publicado, mas, quando observamos criticamente o que é publicado, encontramos poucas ideias novas em circulação. Há muita repetição, muita citação, muito trabalho que faz tudo da forma correta para que possa ser lido numa determinada escola – seja qual for essa escola. O que, em geral, faz com que grande parte dos textos seja muito entediante, não ensine muito, a única utilidade sendo satisfazer o autor, que pode contar um trabalho a mais entre as suas publicações. Mas acho que uma das coisas que se deve pensar, mais do que no número de revistas, é se estamos fazendo publicações interessantes, que trazem algo novo.

Revista – Mas isso não ocorre só nas revistas de psicanálise; nas de medicina, também…

BT – É um fenômeno geral. Mas talvez seja essa uma questão, e eu concordo totalmente com o Mariano. Com a Revista Brasileira, o que temos tentado é uma intervenção no campo e que é assim: quando selecionamos temas que são atuais e você traz autores diferentes, ou problematiza, ou chama pessoas de outras áreas para publicar ou escrever, você tira alguma coisa do lugar. Dentro dessa ideia do estrangeiro, você introduz um elemento disruptor, e a pessoa se olha. Claro, nem que seja pelo menos para folhear a revista. Minha intenção era, quando fiz essa revista, que, no mínimo as pessoas tivessem vontade de folheá-la, de olhar um pouco. Então gera-se alguma coisa.

E acho que o problema não é só das revistas, é do que acontece dentro das instituições psicanalíticas também. Ou seja, as pessoas fazem os trabalhos para passar a membro associado, a membro efetivo. Ora, quantos desses trabalhos não são feitos para cumprir normas burocráticas? Ou seja, do que nós estamos falando é da formação analítica em si, da política científica da psicanálise. Vejo as revistas muito ligadas à formação e a uma política científica. Então, se ela consegue dar a sua contribuição nesse sentido de arejar o cenário, de instigar, de provocar, com um artigo que não está no cânone, mas é interessante, desperta, contém ideias,  é publicado, isso é um estímulo para que tenham mais liberdade para escrever, para ousar publicar.

Houve um evento feito pelo jornal em São Paulo, Da arte de escrever à coragem de publicar. E uma das questões que conversávamos era a de tentar ver quais os fatores que movimentam alguém a escrever e que não são somente institucionais. O nosso trabalho analítico é solitário, ele se passa entre quatro paredes. Às vezes, há algo daquela análise que foi conduzida, que se trabalhou e que se conclui, para o analista, na hora que ele escreve sobre isso. Mas há também uma série de inibições na hora de escrever e de publicar: para quem estou escrevendo? Para meus pares, meu supervisor? Meu analista? Estou escrevendo para constar? A função editorial é uma função que não se esgota em produzir a revista. A meu ver, ela tem a ver com produzir o debate sobre o que é a escrita em psicanálise, o que é publicação em psicanálise, para quem a gente a faz. Acho que ela vai além de tão somente aprontar aquela revista.

Revista – Acho que nós, como somos da comissão editorial, ficaríamos o tempo todo falando sobre essas questões…

Mas também é importante comentarmos aqui  assuntos relativos ao Simpósio da Infância e Adolescência  Elaboramos algumas questões sobre as quais vamos, na medida do possível, conversar dentro do tempo, que é limitado. Por exemplo, há autores que têm defendido a ideia de que a infância e, por consequência, a adolescência não correspondem mais aos conceitos preconizados na modernidade. A infância protegida, inocente, o adulto de amanhã não corresponderiam mais às crianças que habitam a pós-modernidade. O que vocês pensam sobre isso?

MH – Posso falar em relação à adolescência, tema do qual estou mais próximo.  Sobre isso, há algo interessante. A adolescência não é um conceito psicanalítico, nós o importamos e penso que é preciso colocá-lo “entre aspas”. Ao mesmo tempo trata-se de um construto cultural. Houve épocas da história da humanidade em que era um momento de passagem, passagem essa que, por vezes, não existiu ou foi praticamente virtual[MH14] . Passava-se da infância para a idade adulta quase sem transição. Em um momento como o atual, em que a adolescência pode durar quase indefinidamente, é praticamente uma novidade.

Para mim, a adolescência é um dos momentos privilegiados para se detectar as mudanças de época, de fase, um momento particularmente sensível. Nesse sentido, a sintomatologia e a duração variam muito em relação à época. Isso acarreta certa vulnerabilidade, essa espécie de sintonia fina que a adolescência tem com a época. Há uma imagem que, para mim, é muito gráfica para pensar a adolescência. Eu me criei numa província de vitivinicultores. Quando visitamos vinhedos, vemos fileiras de videiras, em cujas pontas há roseirais. Isso não tem uma função estética para tornar os vinhedos mais bonitos ao turismo enológico, mas sim uma função prática: as rosas contraem antes as pragas que podem vir a afetar as videiras e matá-las. Na realidade, os vinhedos estiveram a ponto de desaparecer da face da terra. E, na Europa, desapareceram devido a uma praga. Ou seja, as pragas são um tema sério em relação aos vinhedos. Os vitivinicultores colocam roseirais para que esses pesquem a doença antes que ela apareça. Quando notam que as rosas estão infectadas, já podem aplicar pesticidas sobre os vinhedos. Para mim, os adolescentes são, em relação ao social, esses roseirais. Eles têm esse lugar. A mesma coisa acontecia nas minas: eram colocados canários numa certa altura. Quando havia gases que poderiam matar os mineiros, os canários estavam num lugar onde morriam primeiro.  Os mineiros então tinham tempo para sair das minas. Isso pode se comparar à sensibilidade e à fragilidade do adolescente diante do seu tempo. Para mim, essa metáfora é muito ilustrativa para se pensar nessa espécie de consonância tão forte dos adolescentes com a sua época e na extrema vulnerabilidade em que se encontram.

BT – Acho que se falou tanto dessas mudanças da infância, da adolescência, da cultura, das transformações da subjetividade. Embora a ideia de adolescência seja um conceito social, a infância também o é. Se pegarmos os trabalhos do Philippe Ariès, veremos aquelas criancinhas vestidas como rei, como princesa, como adultos. Me lembro que, em viajem para a Áustria, num restaurante tinha um cachorrinho sentado numa mesa, mas crianças não eram aceitas ali.

Então, qual o lugar da criança em determinadas culturas? No Brasil, pelo contrário, a criança reina com total liberdade nas casas, nas famílias, nos espaços. Minha infância foi na Argentina, e em Buenos Aires o lugar da infância era muito mais contido. Não era só uma questão dos tempos, mas de uma relação. Penso que, então, há muito a falar sobre essa questão da cultura em relação à infância. Temos uma noção,  acho que isso é específico da psicanálise, que é o infantil, que não é a infância. Os psicanalistas que trabalham com crianças e muitos psicólogos confundem essa noção. E então vão trabalhar com o dialogar.  É uma das questões que quem trabalha com crianças sabe. Às vezes há a demanda da escola, dos pais, dos psicopedagogos, dos fonoaudiólogos e todo o mundo se ocupa da criança. Quanto ao psicanalista, acho que este perde a sua especificidade quando esquece que o seu foco é o infantil, independentemente da cultura. É claro que ele muda conforme certos determinantes da cultura vão entrando como reais no universo da subjetividade infantil, mas é com o infantil que a gente lida. Não podemos esquecer que lidamos com a sexualidade infantil. O grande ponto de Freud tem a ver com a pulsão, com a sexualidade infantil, com as marcas – esse é um ponto central. A partir daí podemos ver o que acontece quando as crianças são erotizadas através dos jogos, da propaganda, da mídia.

Uma discussão muito interessante é quanto ao tempo de latência da nossa cultura. É uma noção bastante importante a de que ela vai sendo esmagada, comprimida. E você quase transforma as crianças em adolescentes. Com seis, sete, oito anos elas já são pequenos adolescentes.  E o tempo, que era da latência, de desenvolvimento do pensamento, de uma certa calmaria da sexualidade infantil, transforma-se numa coisa que virá com a puberdade, com o despertar. Nossa cultura não respeita isso, tem necessidades mercadológicas muito fortes de sexualizar muito rapidamente a infância. Então, nós que trabalhamos com crianças temos questões bastante sérias em relação a isso.

Outra questão tem a ver com a composição das estruturas familiares. Ou seja, a estrutura familiar mudou enormemente. Você tem famílias que são compostas por filhos de dois, três casamentos. Quem são os irmãos hoje? Como se define o laço fraterno? E as relações edípicas nesse contexto? Há relações tais como homoparentalidade, casais homossexuais que adotam crianças, por exemplo. Como estas coisas repercutem na clínica? E o tema de bebês de proveta? Situações em que uma mulher recebe um óvulo de outra mulher, que é fecundado, externamente, por um homem e nela implantado. Então esse filho passa a ser dessa mulher. Mas o óvulo veio de outra.e o pai da criança sente que tem mais direito sobre a criança porque ele o espermatozoide é dele. Quer dizer, de que modo os vínculos imaginários que, de alguma forma, hão de repercutir na criança e na sua subjetividade, vão se constituir na nossa cultura? Não é que sejam piores ou melhores dos que existiam nos tempos da modernidade, mas são outros. E não podemos ficar nostálgicos do que foi, mas entender e pensar em como trabalhar com estas questões. E estar muito abertos e muito em sintonia com o nosso método de trabalho, ou seja, no sentido de privilegiar essa questão do método na clínica e não certas ideias quase normativas sobre como o indivíduo deve ser. Porque, se entrarmos nessa normatividade superegoica e a colocarmos como um modelo psicanalítico, a gente bota os pés pelas mãos. Então devemos estar abertos a esse novo sem idealizá-lo e sem transformar em melancolia a perda do antigo. Eu acho que esse é o grande desafio dos analistas que trabalham com crianças.

Outro tema central parece ser o das exigências e das pressões. As pressões que enfrentamos como analistas de crianças numa sociedade na qual a tristeza é condenada. Ninguém pode ficar triste.  No mundo adulto, os pais se medicam com antidepressivos porque todo mundo tem que sentir-se feliz, contente, mundo esse que é de abundância, principalmente entre as pessoas que chegam para psicanálise nos consultórios. Não estou falando dos serviços públicos de saúde. Nesse mundo, o que nos é demandado pelos pais? Que devolvamos a eles crianças felizes, já com o compromisso nosso de prepará-las para que sejam pessoas de sucesso no futuro. Qual é a expectativa? E até onde a gente se compromete ou não, às vezes até inconscientemente, com esses ideais que nos são demandados? São tantas as questões da contemporaneidade que precisamos nos manter muito atentos. Não para que se mude, necessariamente, nossa forma de trabalhar, mas as armadilhas em que se pode cair são muitas em minha opinião.

Revista – Entram muitos fatores no campo, não é?

BT – Muitos.

MH – Algo interessante na psicanálise é que esta sempre se situa na contramão da modernidade[MH15] . E, se acaso não estiver, deveríamos suspeitar. Um acoplamento excessivamente sem ruídos com os tempos que vivemos acredito não ser um bom sinal.

Revista – E, nesse sentido, que teorias vocês têm encontrado que consideram como bom aporte para orientar o trabalho clínico com crianças e adolescentes?

MH – Na verdade o que eu mais leio é Freud e Lacan. Na realidade, nenhum dos dois trabalhou muito sobre jovens[MH16] .

Revista – É que o nosso trabalho é com o inconsciente das crianças, dos adolescentes e dos adultos…

MH – Vou comentar com vocês o que acontece comigo em relação à bibliografia[MH17]  em geral. Acho a bibliografia, salvo honrosas exceções, tremendamente tediosa. Me acontece algo que sinto não se encaixar com o objeto de estudo: sempre chamou minha atenção o fato de que se escreva de uma maneira tão fechada sobre esses temas da juventude, um objeto de estudo tão vivo, tão interpelador, tão em sintonia com os tempos. Comparando, há outra linha de bibliografia analítica, em minha opinião especialmente entediante, que é a bibliografia sobre psicossomática. Mas nela há certa sintonia porque o que se escreve sobre psicossomática é tão fechado e aplainado quanto o que se passa com os fenômenos psicossomáticos. Isso conseguimos entender.

Agora, quando se trata dos jovens, não. Então encontrei alguns autores com pequenos livros que me ajudaram muito. Mas, como você dizia, eu tento pensá-los a partir dos conceitos nodulares da psicanálise. E o fato de que os autores que eu mais sigo não tenham pensado particularmente na clínica com jovens me proporciona uma espécie de liberdade que é a de aprender dos jovens. Precisamos sentar diante dessa clínica abertos a aprender de cada jovem. Para mim é  muito difícil ter a sensação de que sei alguma coisa sobre isso. Isso, clinicamente, em termos pessoais, funciona, permite-me trabalhar de uma maneira mais confortável. Ao mesmo tempo, há algo que me acontece, não só com os jovens, que é nutrir-me de outras coisas que vêm de fora do âmbito psicanalítico e que acabam sendo enriquecedoras da escuta.  Por exemplo, ler a Laranja mecânica, ou  Salinger com O apanhador no campo de centeio, ou Brodovitch[MH18]  com algumas ideias sobre a adolescência é, para mim, às vezes, muito mais interessante do que ler todas as atas de um congresso sobre a adolescência. E permite escutar jovens com muitos matizes. A mesma coisa me acontece com o cinema.

Além disso, os jovens mudam tanto na sua linguagem, nos seus gostos, nos seus códigos, que nós sempre nos vemos atrás deles. É muito difícil estar em sintonia com a juventude que nos consulta nos consultórios. A sensação que tenho é de que  tentamos nos aproximar, mas, quando chegamos aqui, eles já estão [MH19] . Nisso há uma espécie de lacuna intransponível.  Minha maneira  de suportar essa lacuna é me colocando na posição de que sei que sempre estarei atrás deles. Nesse sentido, a maneira de assistirem à televisão, o uso que fazem de seus celulares, a gíria que usam, tudo me parece sempre um pouco enigmático. Então, tento, nessa clínica, mais aprender do que recorrer a uma teoria que aplicaria com os jovens. Acho que isso não funciona muito.

BT – Talvez eu vá polemizar um pouco para criar diálogo. Evidentemente, em psicanálise, se a gente aplicar uma teoria, vai matar a experiência, de algum modo. Mas eu estava pensando em algumas ideias fortes em psicanálise, como, por exemplo, a ideia de espaço transicional. E espaço potencial. É uma ideia que transformou, a meu ver, o modo de pensar o estar com o paciente. Penso, pois, que há alguns autores que tiveram intuições e deram forma a algumas dessas intuições que nos fizeram mudar a concepção do trabalho. Por exemplo, quando Mannoni escreveu A primeira entrevista em psicanálise, nos anos 60. Antigamente, o trabalho psicanalítico com a criança consistia em você receber a criança, trabalhar com ela enquanto  os pais ficavam de fora. Quando se começou a pensar que há uma transferência dos pais para com o analista de criança e dentro do modelo de que a criança tem um lugar no desejo do outro,e que isto estrutura um pouco um lugar determinado da criança, houve abusos enormes, mas também abriu-se um campo para pensarmos como conduzimos as entrevistas com os pais, que lugar eles vão ter e a sua transferência para com o analista de crianças. Isso era deixado de lado.

Então, a questão das teorias… Claro, depois que surge uma grande teoria, surgem centenas de trabalhos que reproduzem aquela intuição, aquele momento da descoberta. Mas eu acho que, na análise de criança, como no campo geral da análise, houve momentos em que algumas teorizações, jogaram uma luz sobre um tema. E isso, de algum modo, fez avançar a nossa possibilidade de trabalhar em psicanálise com certas patologias, certas dificuldades, com certas situações que antes não se enxergavam muito bem. Isso não quer dizer que você vá aplicá-las ou reproduzi-las. Se em tudo o que publicamos, nas revistas todas, na nova Caliban, na Revista Brasileira, pudermos garimpar,algum autor… Porque, afinal, nós publicamos autores. E para que publicá-los se vai se repetir o mesmo? Penso que a gente publica na esperança de que, às vezes, surja algo, um gesto criativo, um momento de inovação que nos ajude a ver melhor. E que, às vezes, subir no ombro de um gigante não quer dizer que você vá reproduzi-lo ou aplicá-lo, mas que vai ter elementos para ver mais. Se não corremos um certo risco de nos colocarmos num lugar… É claro que quando você está na posição de analista as descobertas serão suas, mas há um caminho já percorrido e, às vezes, ele ajuda.

Falando em autores brasileiros, por exemplo. Há um autor italiano que morou muito tempo em São Paulo e depois voltou para a Itália, não sei se o conhecem, o Armando Bianco Ferrari. Ele foi didata da sociedade de São Paulo e escreveu sobre a adolescência de um modo que eu acho ser uma das coisas mais bacanas sobre a adolescência. No sentido de realmente dar à adolescência esse lugar singular que ela tem. Por exemplo, eu poderia citar Winnicott em algumas coisas, ou as intuições originais da Melanie Klein. Sem dúvida ambos são fundamentais para certos momentos. Eu não gosto de me apegar a um autor. Na Argentina há Silvia Bleichmar, com as questões que ela trouxe sobre diagnóstico e os modos de intervir conforme determinadas estruturas. Pelo menos, para mim são coisas que me ajudam, às quais eu não me submeto, mas que me ajudam a transitar.

MH – Não posso polemizar porque concordo. Tentei destacar uma posição, mas também houve, para mim, coisas fundamentais no que se refere a autores. Por exemplo, quando você falou de Mannoni, lembro, quando li A primeira entrevista com o psicanalista,  o efeito que ela teve em mim. Não foi “- Bem, aprendi os seguintes conceitos a aplicar.” Mas o que mais me impactou desse livro é quando fala que, na primeira entrevista com o psicanalista, é preciso que aconteça algo[MH20] , algo que sacuda de alguma maneira. Quando me refiro à bibliografia psicanalítica da adolescência, me refiro ao que acontece com outras disciplinas,  saber que precisamos estar atualizados sobre o que está sendo publicado, como se houvesse uma espécie de progressão cumulativa do conhecimento[MH21] . Eu, na verdade, leio pouco sobre algo que seja novidade e leio muito sobre aplicação. Nesse sentido, às vezes, é muito mais fresco ler os clássicos (os dois Mannoni, Winnicott é um clássico) que o que se produz mais contemporaneamente. Contemporaneamente, há uma pessoa que está muito perto de nós e que acho muito interessante para se pensar a adolescência, é Marcelo Viñar, do Uruguay. Ele tem escrito muito sobre a adolescência e tem uma abordagem dos jovens que recomendo fervorosamente. Escreveu alguns livros e, além disso, a maneira como se transforma em interlocutor dos jovens é maravilhosa.

Revista – Bem, estamos chegando ao final. Foi maravilhoso conversar com vocês. Queríamos agradecer esse debate tão rico e também aproveitar para entregar um presente a vocês, presente que não podem devolver…! (Entregamos exemplares da nossa revista).

Tradução de Beatriz Affonso Neves

Revisão técnica de Rosane Poziomczyk

Bernardo Tanis

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Mariano Horenstein

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© Revista de Psicanálise – SPPA


[1] Psicanalista didata da Associação Psicanalítica de Córdoba e membro titular da Fepal e IPA.

[2] Psicanalista. Doutor em Psicologia Clínica. Membro efetivo e docente da SBPSP. Editor da Revista Brasileira de Psicanálise.


 [MH1]No soy doctor, tengo licenciatura y maestrías pero, en tanto psicoanalista, preferiría que aparezca sin título universitario

 [MH2]Calibán-Revista Latinoamericana de Psicoanálisis

 [MH3]cuatro

 [MH4]Si fuera posible, sacaría la frase marcada en verde.

 [MH5]Viviane Sprinz Mondrzak

 [MH6]Me refiero a la comunidad de analistas de FEPAL

 [MH7] [MH7]Incluir por favor en nota que la revista ya está publicada y disponible en cada sociedad, además de poder consultarse en .

 [MH8]Sacar lo pintado en verde.

 [MH9]Sacar lo pintado en verde y poner “matemático y poeta”

 [MH10]Se refiere a pensar lo que sucede en el psicoanálisis latinoamericano en relación al psicoanálisis en el mundo

 [MH11]Me gustaría sacar el párrafo pintado en verde. Quizás alguien en la SPPA, donde tan bien he sido recibido, pueda sentirse molesto con ese comentario y no me gustaría que suceda.

 [MH12]Agregar: en términos económicos

 [MH13]Poner esa palabra entre comillas “ “

 [MH14]Me parece confuso. Propongo reemplazar lo pintado en verde por lo siguiente: La adolescencia es un momento de pasaje. Hubo épocas en la historia de la humanidad en que ese pasaje era reducido a un ritual, momento puntual en el tiempo, prácticamente virtual.

 [MH15]Reemplazar modernidad por contemporaneidad .

 [MH16]Agregar puntos suspensivos…

 [MH17]Agregar: sobre adolescencia

 [MH18]Witold Gombrowicz

 [MH19]No sé si entiendo bien la traducción: el sentido original de la frase debería ser que “cuando llegamos, ya no están más allí, están en otro lado”

 [MH20]Poner “algo” entre comillas

 [MH21]El sentido es que en otras disciplinas hay una necesidad de actualización constante y se presume que el último “paper” es el más acertado, y hay que estar al día en ello. El saber así entendido, aparece en una acumulación progresiva. No creo que ése sea el caso en psicoanálisis