Conversação com Alain Badiou: “a psicanálise pode nos salvar, ela deve nos iluminar”
(Entrevista realizada en París por Mariano Horenstein, en junio de 2019 en París, en presencia de Isabelle Vodoz)
Alain, na sua opinião, qual foi a contribuição da psicanálise para o mundo, em geral? É uma pergunta simples (risos)
A importância da psicanálise foi muito grande, para mim. Para mim, ela foi muito grande em um momento particular da minha formação como filósofo. Porque, em dado momento, no começo dos anos 1960, eu vivia uma grande contradição. Minha base filosófica era o existencialismo sartriano. E, ao mesmo tempo, a atualidade filosófica era o estruturalismo. Duas coisas muito opostas, e eu estava no meio desta contradição quando eu tinha 20 anos. E o ponto crucial desta contradição, para mim, era a questão do sujeito. No existencialismo, o sujeito – a consciência – era absolutamente central. No estruturalismo, havia uma ideia da ausência do sujeito. Na minha formação filosófica – Althusser, por exemplo, que era meu professor na Escola Normal Superior – dizia que a categoria do sujeito era uma categoria ideológica, uma categoria burguesa. E eu estava nessa contradição, em que eu aceitava uma série de desenvolvimentos do estruturalismo, ao passo que tinha tido uma importante formação em lógica formal, em matemática. Então eu estava um pouco nesse lugar. Mas eu não queria de jeito nenhum abandonar a categoria do sujeito.
A solução me foi proposta por Lacan e a psicanálise. A saber, pela possibilidade de ter construções estruturais significativas, importantes, a respeito do sujeito, sem eliminar, mas, ao contrário, renovando a categoria do sujeito. Então a psicanálise teve um papel fundamental para mim. Porque ela me permitiu manter a categoria do sujeito em um contexto que não precisava mais ser o contexto fenomenológico ou existencialista.
Eu pude manter, digamos assim, um conceito estrutural do sujeito. Era como uma síntese. Então eu devo muito à psicanálise por esse ponto de vista. E eu sempre defendi que a filosofia contemporânea deveria se manter em diálogo com a psicanálise. Esta sempre foi minha posição.
É maravilhoso porque eu fiz uma pergunta com um aspecto muito geral e você respondeu de forma muito particular – todas as respostas são muito particulares. Adorei a maneira como você construiu sua resposta. Então você está falando a respeito de você e além de você, porque você fala que a filosofia precisa ter conexões com a psicanálise nesse sentido – filosofia em geral. Por favor, fale um pouco mais sobre isso.
Eu acredito que a filosofia contemporânea, a filosofia moderna, a filosofia da nossa época, precisa muito da psicanálise para renovar de maneira não metafísica – fora da metafísica – a questão geral do sujeito. A questão do sujeito é uma velha questão filosófica, muito mais velha que a psicanálise, mas…
A psicanálise tem uma história curta, cem anos, e a filosofia tem milhares de anos…
Mas eu acredito que a filosofia contemporânea não pode continuar a falar do sujeito, tema da psicologia etc. sem um diálogo muito preciso e muito completo com a psicanálise. Então não é um ponto particular, é um ponto geral. Em geral, eu acho que não há, hoje em dia, filosofia moderna possível sem uma relação estreita com a psicanálise. Então, claro, a independência da psicanálise é conservada. Eu não estou dizendo que a psicanálise é uma parte da filosofia. Alguns psicanalistas me acusaram de sustentar isto. Disseram que eu queria anexar, tomar posse… Não, a psicanálise é uma disciplina independente. Ela tem não somente uma teoria independente, mas também uma prática independente, com o tratamento psicanalítico. Então ela é independente. Mas a filosofia deve ter laços estreitos com essa disciplina independente. Como, aliás, ela tem laços estreitos com a matemática, com a produção estética, com a ação política. Mas sobre a questão precisa de “o que é um sujeito?”, esta é uma questão filosófica primordial, inclusive no meu sistema filosófico. Acredito que a psicanálise seja uma necessidade modernapara a própria filosofia em geral. Então não acredito que possa haver um filósofo aceitável que não conheça nada de psicanálise. A cultura do filósofo deve englobar um conhecimento preciso da psicanálise.
E quanto ao lugar do filósofo na sociedade hoje em dia?
Acho que o lugar do filósofo na sociedade, primeiramente, não é uma necessidade. Porque conhecemos sociedades sem filósofos. Então a filosofia é uma singularidade cultural, social, humana. Ela tem uma vida longa, mas não geral, nem universal. Aliás, a filosofia começou com a matemática, na Grécia, no século V a.C., e se desenvolveu em um certo número de países, mas não todos. Não acho, por exemplo, que existam filósofos chineses. A filosofia é uma singularidade. E esta singularidade, sendo uma singularidade, não pode… não se pode jamais sustentar que a filosofia é uma necessidade. Ela não é necessária. Pode-se viver sem filosofia. Ela é, no entanto – na minha opinião, obviamente – benéfica. É melhor que haja filosofia. Mas, finalmente, o lugar do filósofo não é um lugar completamente estabelecido. Um lugar que existe e pronto. Tem um lugar para professores de filosofia. Mas, na minha opinião, a maioria dos professores de filosofia não é filósofo. Não é absolutamente a mesma coisa. O lugar do filósofo é incerto. E está sempre a ser reinventado. É isso que eu penso. E que toda filosofia – e todo filósofo – reinventa seu lugar na sociedade. E há opções muito diferentes. Tem filósofos que aceitam ser principalmente grandes professores universitários. É o caso da maioria dos filósofos alemães: Kant, Hegel – grandes professores universitários. Havia filósofos que, ao contrário, recusaram completamente essa posição. Era o caso dos positivistas, como Augusto Comte, ou Sartre, que nunca foi professor universitário. Há filósofos que são, acima de tudo, homens de opinião – isto é, homens do combate ideológico, político. Na França, isto começou com Voltaire, ou Rousseau, que tinham uma função crítica no interior da sociedade. E, finalmente, acho que, a cada época, a filosofia que nunca é necessária, reinventa, reconstitui uma imagem de seu lugar na sociedade. Então, como sempre, há figuras mais instaladas, mais tranquilas, que são, geralmente, as figuras acadêmicas. E tem as figuras mais contestadoras, mais rebeldes, que são, geralmente, figuras políticas. E, no fundo, isso começou muito cedo, porque nosso ancestral principal, Sócrates, foi condenado à morte. Ele foi condenado à morte pela sociedade, enquanto outros grandes filósofos foram celebridades aceitas no mundo inteiro. E esta é a história da filosofia que é, em certo sentido, uma disciplina suplementar. É sempre algo extra. Hegel dizia: a filosofia vem sempre depois. Ele o dizia poeticamente: o pássaro de Minerva levanta voo apenas ao cair da noite. E eu entendo o que ele queria dizer: que a filosofia não é algo que tem um lugar, como as outras disciplinas, como a vida, como o Estado, como a política. Ela vem depois, e precisa organizar esse lugar que consiste em vir depois.
Pelo que eu entendo ao ler seus textos, parece que o lugar do filósofo – não o professor de filosofia, o filósofo – de maneira crítica, tem um tipo de estrangeirismo, algo de estranho, de estrangeiro.
Sim, exatamente. Concordo. O filósofo talvez seja um stranger in the night, algo assim.
É como um título: strangers in the night. Porque a psicanálise também é estrangeira. Certamente.
Então strangers in the night parece muito bom. Já tenho o título desta entrevista. Legal. Porque…Você concorda que o lugar da psicanálise na sociedade também tem algo de estrangeiro?
Tem algo assim. Acredito que possamos fazer uma comparação da psicanálise com a filosofia. O problema é que o lugar do psicanalista é mais do lado da medicina. Enquanto o lugar da filosofia é mais do lado do ensino.
Mas em ambos os casos são práticas marginais.
Concordo. O psicanalista é um estranho, um estrangeiro na medicina, ao mesmo tempo que é um médico também. E o filósofo não é exatamente um professor, mesmo se é professor. Então o lugar deles é sempre um lugar ao lado.
Sei que você adora artes também, e que você escreveu muito sobre o assunto. Você acha que o lugar do artista na sociedade é algo similar?
O artista é, geralmente, ligado à atividade social. Se você faz… se você pinta… se você é um pintor, você tem que vender seus quadros, você faz retratos de pessoas de poder. E se você é arquiteto, você constrói os palácios, você constrói as assembleias nacionais. E se você é músico, você toca para uma grandeplateia. Então eu acho que, na verdade, o artista tem um lugar mais definido na sociedade. O lugar é mais definido porque ele é realmente uma necessidade para várias atividades – várias atividades de poder. Todo poder se cerca de pintores, arquitetos, músicos ou escritores. Por exemplo, no século XVII na França, pessoas como Molière (teatro), Racine (teatro), mas também Lully (música), e todo tipo de pintor, fazem parte da corte de Louis XIV. Mas não o filósofo. O filósofo Descartes foi para a Holanda porque ele achava que… ele disse: na França tem polícia demais. Então não há o lugar oficial do filósofo, enquanto há lugares oficiais para o artista. O artista pode recusá-los às vezes, mas ele vai ter, neste momento, um destino difícil. E o filósofo… O filósofo pode falar com qualquer pessoa. Você sabe: Sócrates ficava na rua e falava com qualquer pessoa. Não era um lugar oficial.
Qual é a ligação do filósofo e do psicanalista com o poder, na sua opinião?
Eu acho que o verdadeiro filósofo e o verdadeiro psicanalista não estão ligados ao poder. Acho que eles são independentes do poder… se possível.
Seu colega, Zizek… eu o entrevistei em Ljubljana, e ele me disse que uma espécie de pecado de Jacques-Alain Miller foi ter se fascinado pelo poder.
É verdade. Jacques-Alain Miller, que era meu amigo, era fascinado pelo poder. Certamente. E é por isso que ele não é um bom psicanalista, na minha opinião.
Isto é um obstáculo para o seu pensamento psicanalítico de certa forma, porque provavelmente você é contra o poder…
Praticamente, é toda uma necessidade, porque quando você pensa verdadeiramente, você pensa inclusive as possibilidades do mundo. Você não pensa a partir do estado do mundo. Você também pensa as possibilidades. Então não é possível estar do lado do poder porque todo poder é conservador por definição.O poder quer conservar o poder. Então, de certa maneira, ele quer conservar a sociedade que torna o poder possível. O filósofo não tem interesse nisso. Quando ele estuda a sociedade política, ele pensa sempre não em função do estado das coisas. Ele pensa em função de valores, em função de transformação, em função de futuro etc. E o filósofo não pode ser um homem de poder. E o psicanalista também não, já que ele trabalha com o inconsciente. Mas o inconsciente se rebela. O superego é o poder. Mas não tem só o superego. E até, de certa forma, a psicanálise luta contra o superego, para tentar tocar o inconsciente verdadeiro, o inconsciente que não é dominado ou falsificado pelo superego. Então há, na psicanálise, uma luta contra o poder. E há, na filosofia, uma crítica ao poder. Esta também é uma ligação entre as duas.
Então um filósofo conservador, ou um analista conservador, são oximoros?
O filósofo conservador é algo como um animal estranho. Algo assim.
Você falou sobre o inconsciente. Você escreve filosofia e você escreve literatura. Qual destas práticas é mais próxima do inconsciente?
Certamente a literatura. Em certo sentido, o trabalho do filósofo é de transformar o máximo possível de inconsciente em consciente. Os materiais do filósofo também incluem o inconsciente, naturalmente. Os materiais de qualquer sujeito incluem o inconsciente. Eu acho que a filosofia deve produzir o máximo de consciente possível. É isso. Ao passo que, para o artista, este não é o problema. O artista deve fabricar formas. E deve fabricar formas com o inconsciente também. E não ter medo do inconsciente. Já o filósofo desconfia um pouco do inconsciente. Ele prefere o que é consciente. Reconhecendo que existe o inconsciente. Justamente, como ele reconhece que existe o inconsciente, ele deve estar em conexão com o psicanalista. Mas o seu trabalho é de aperfeiçoar o consciente. Não é sondar, entrar nas profundezas do inconsciente.
Há cerca de um ano, recebi uma mensagem da Isabelle.
Isabelle: Eu lembro muito bem dessa mensagem. Isso me interessa!
Vou ler: “Alain Badiou te agradece a proposta – de entrevista-lo – , mas ele não pode aceita-la no momento. Parece-lhe, na verdade, que será útil que os psicanalistas se decidam a assumir uma posição a respeito de um certo número de problemas das sociedades atuais sobre os quais eles guardam um silêncio prudente.”
Isabelle: Eu me lembro muito bem disso! Eu lembro exatamente e eu queria que falássemos disso. Porque é importante. E você é um psicanalista. Então: o que você acha?
Eu recebi como um conselho importante.
Por um tempo – ao menos um momento – eu tinha um pouco de raiva dos psicanalistas. Mas por quê? Porque eu vejo, em particular, um grande problema para os jovens garotos de classe média-baixa. Para as moças, há uma outra questão, mas para os garotos de classe média-baixa, os pobres, os garotos das cidades, eu vejo problemas que deveriam realmente interessar ao psicanalista. São problemas ligados à questão da insuficiência do pai. São problemas ligados ao déficit do simbólico. Uma pobreza do simbólico. São problemas que fazem com que eles não cheguem a organizar a relação do imaginário com o real. São problemas que, finalmente, enviam-lhes a falsas direções, como a violência islâmica e coisas do tipo. Acredito que todos esses problemas sejam problemas políticos. Mas há uma camada inconsciente muito forte que tem a ver com o psicanalista. E acho que o psicanalista deveria assumir uma posição a respeito. Criar espaços aos quais esses jovens garotos possam ir e contar suas histórias. E os psicanalistas não o fazem. Não o fazem. Eles têm, em geral, posições finalmente bastante conservadoras hoje em dia. Então eu tinha um pouco de raiva dos psicanalistas, por isso você recebeu aquela mensagem.
Na América Latina, temos muitas experiências que seguem esse caminho que você descreve. Eu entendo o que você diz. Mas qual é a diferença, na sua opinião, entre falar na esfera social como um psicanalista e falar na esfera social como um cidadão?
Acho que, em certo sentido… Acredito que o psicanalista não deve esquecer que ele… que a psicanálise se dirige ao sujeito individual. O real da psicanálise é, finalmente, o tratamento. E o tratamento é uma situação a dois. Agora… o resto… se estamos além disso, estamos na política, de uma forma ou de outra. Então aí não é exatamente a questão da relação entre a filósofia e a psicanálise; é a questão da relação entre psicanálise e política. E esta questão da relação entre a psicanálise e a política gira sempre, na minha opinião, em torno da figura do simbólico. Porque o simbólico é coletivo, naturalmente. Há impactos pessoais, mas as transformações do simbólico são coletivas. Quando Freud escreve Mal-estar na civilização, ele mostra muito bem que a análise do destino do simbólico é também um tema cultural. Um tema da sociedade. Mas esta é uma análise que propõe a psicanálise. Depois, surge a questão de saber o que fazer com isso na própria psicanálise. Como a psicanálise é alimentada ou transformada por isso… E acho que tem um problema da mesma ordem. Acho que, hoje em dia, há um mal-estar na civilização… Sabe, o mal-estar na civilização era por causa da Guerra de ’14, a Primeira Guerra Mundial. E depois, há um mal-estar na civilização. E este mal-estar na civilização tem efeitos inconscientes e psicológicos consideráveis, que estão ligados, acredito, com a psicanálise. E aqui, em todo caso, vemos muito pouco feito pelos psicanalistas nessa direção. E é por isso que eu estava enfurecido.
Você escreveu algo… Vou citar: “No campo da psique, só a Psicanálise, acredito, é capaz de nos salvar.”
Se a crise é a crise do simbólico, acho que nesses efeitos subjetivos, nesses efeitos inconscientes, a psicanálise deve nos iluminar. É preciso escrever sobre o novo mal-estar na civilização, para a atualidade.E é preciso torná-lo conhecido. Depois, isto terá efeitos no tratamento psicanalítico, e nos efeitos psicanalíticos, e na relação dos jovens com a psicanálise, isto terá também efeitos políticos. Efeitos organizados, efeitos de transformação. Terá os dois. Mas quando eu digo que a psicanálise pode nos salvar, eu digo que é ela que deve nos iluminar. Ela deve nos esclarecer a respeito da infelicidade subjetiva contemporânea de toda uma parte da nossa juventude. Ela deve nos explicar por que essas coisas existem; por que há uma desorientação subjetiva, essencial, em uma parte considerável da juventude contemporânea. A psicanálise deve escrever o mal-estar na civilização hoje. É isso. E isto vai tocar na questão do significante do pai, sim; vai tocar isto, vai tocar a questão da relação homem-mulher hoje, as relações sexuais hoje. Vai tocar todas essas questões, que são questões da psicanálise. É por isso que se trata de uma aliança não somente entre a psicanálise e a filosofia, mas, em certo sentido, também entre psicanálise e política. Porque acredito que, hoje, trate-se em política ou em sociedade questões como o feminismo, a relação sexual entre homem e mulher, o mal-estar dos jovens etc. Mas este tratamento é muito frágil, muito insuficiente porque o pensamento é frágil. E este é um pensamento sobre o qual eu realmente creio que a psicanálise tem algo de essencial a dizer. E um sinal disto são os ataques à psicanálise.
Por favor, explique melhor… Porque você diz que isso é um sinal do que é preciso: pensar o poder a partir da psicanálise. Se entendi bem, você está dizendo que um sinal disto é que a psicanálise está sob ataque. Explique melhor, por favor.
Acredito que o mal-estar na civilização é uma necessidade para a ordem contemporânea. É o preço a pagar pelo capitalismo moderno. Então eles querem proteger tudo isso. Eles querem proteger tudo isso – nossos professores, nossos chefes. Eles querem proteger tudo isso e eles têm medo que a psicanálise venha dizer: “Não! Há um mal-estar real que deve ser transformado.” E por esta razão, eles atacam a psicanálise. E acho que os psicanalistas têm medo demais de serem atacados. É normal ter medo de ser atacado.
E, de certa forma, ser psicanalista traz riscos. Na minha opinião, é uma profissão de risco.
Concordo. É uma profissão de risco. Seguramente. E é também uma questão ideológica porque há muitos ataques a psicanalistas.
Isabelle: Mas… Posso falar uma coisa? Os psicanalistas são atacados não porque disseram algo que possa ser atacado, mas porque não fazem nada a respeito. Então o ataque é nada. Não interessa. Eles não assumem o risco…
É melhor ser atacado pelo que você disse do que pelo que você não disse.
Concordo plenamente (risos).
Na sua opinião, se você fosse um tipo de etnógrafo, como você veria o ambiente psicanalítico, as instituições, os códigos, o mundo psicanalítico, do ponto de vista de um estrangeiro, já que você conhece muito bem a psicanálise daqui?
Eu acho que há, hoje… Vou falar em relação à França e à Europa – não sei a situação no mundo. Talvez a situação seja melhor na América do Sul. É a minha visão. Meu julgamento neste ponto de vista é um julgamento principalmente sobre a França, ou sobre a Europa. Me pareceu, na minha experiência… eu tive a impressão de que a situação era menos ruim na Argentina, por exemplo. Mas é uma visão superficial. Eu acho que a situação organizada, as escolas psicanalíticas, as intervenções, eu acho que tudo isso é, até agora, muito frágil. Não tive uma boa impressão. Acho que há rivalidades inúteis. Acho que há despotismos de direções sagradas e intocáveis. Acho que há uma timidez política. Acho que tudo isso não está bem. Frequentemente eu comparo o estado da psicanálise hoje com o estado das organizações trotskistas em política.
Por quê?
Há muitas organizações rivais. Muitas discussões meio incompreensíveis. Muitas questões de carreira, de saber se temos a clientela etc. E, ao contrário, não vejo um discurso forte, importante, submetido à discussão geral. Creio que, na França hoje, a psicanálise está doente.
É uma doença terminal?
Não sei. Não sei. Mas se volto na minha vida, digamos, trinta anos atrás, eu sentia a psicanálise viver, eu a sentia presente na discussão cultural. Eu sentia que muitos filósofos discutiam com a psicanálise – a favor ou contra, mas tinha importância. Hoje, a psicanálise é uma especialidade. Ela está ausente do debate cultural geral.
Isabelle: Eu queria acrescentar que você – dirige-se a Badiou – também escreveu um artigo, se você se lembra, mostrando que, atualmente, ataca-se Freud, ataca-se Marx, Darwin… Que são os três grandes do século XIX e que são atacados de todas as formas.
Não, não, mas acho que isso é verdade. Ataca-se Marx por uma razão evidente: porque defende-se o capitalismo. Ataca-se Freud, como já dissemos, porque os psicanalistas podem ser independentes quanto ao julgamento sobre o estado da crise do simbólico, o estado da subjetividade. E ataca-se Darwin porque Darwin é um pensador da mudança, um pensador da evolução. E o que se faz? Não querem evolução alguma, querem conservar as leis tais como são. Mas acredito que, sobre esta situação, o movimento psicanalítico, como o vejo, está doente.
E é verdade que, muitos anos atrás, na época dos Cahiers pour lÁnalyse, você jurou que não se tornaria um analista? Você e o grupo de Cahiersjuraram que não se tornariam analistas, assim como muitos outros fizeram?
Sim, é verdade, é verdade. Nunca tive vontade de ser psicanalista. E acho – voltamos ao início de nossa discussão – que a psicanálise é uma necessidade para o filósofo. Já expliquei por que – aliás, a relação com a psicanálise. Mas acho, também, que não é necessariamente bom para o filósofo ser psicanalista. Não é a mesma coisa. Acho que, quando se é psicanalista, tem-se uma certa relação com a psicanálise que é também uma relação prática, profissional, um engajamento pessoal etc. E é totalmente particular, e acho que não é necessário e nem sequer é produtivo para o filósofo ter essa relação com a psicanálise. Acho que se deve ter uma relação com o que eu chamaria de intelectualidade da psicanálise. Suas propostas, seus conceitos, seu pensamento. Mas a psicanálise prática, real, organizada é outra coisa. Então eu sempre disse: eu gosto de psicanálise, acho-a fundamental, acho que é uma grande invenção na história humana, mas não tenho a necessidade de me tornar psicanalista. Eu posso encontrar, na história da psicanálise, todas as lições de que preciso. Posso ler Freud, posso ler Lacan, posso ler colegas psicanalistas. Mas não acho que haja necessidade, para o filósofo, de ser psicanalista, porque inclusive isto pode ser um obstáculo, ele vai ficar até um pouco incomodado, um pouco perturbado. Há razões de perturbação entre as duas disciplinas se você é psicanalista de fato. E, em particular, porque neste ponto, o que se torna prioritário é a prática, e a prática psicanalítica é muito exigente, muito particular. E, assim como Lacan falava muito dos filósofos, de Hegel, de Heidegger, de Descartes etc., e, ainda assim, era um pouquinho antifilósofo, da mesma maneira eu falo muito da psicanálise…
… sendo um pouquinho antipsicanalista…
(risos) Exatamente! Em simetria!
É um tipo de vingança…Você nunca pensou em fazer análise?
Não
E alguns filósofos trabalham com conceitos psicanalíticos como Zizek, Laclau, você… Quais as principais diferenças que você encontra entre seu estilo, seu modo de pensar e seu modo de usar ferramentas psicanalíticas para pensar, e o que fazem Zizek e Laclau?
Acho que quando estamos muito próximos à psicanálise, ou muito próximos à subjetividade do psicanalista… há sempre uma pequena forma de ceticismo no psicanalista. Ceticismo filosófico. Quero dizer com isto que a psicanálise é também uma disciplina que reúne um certo número de construções intelectuais ao redor de uma raiz neurótica. Não sempre, mas frequentemente. Quer dizer: os psicanalistas sabem ver a pequenez que há em tudo o que é grande, enquanto o filósofo busca ver o que é grande em tudo o que é pequeno.Não é exatamente a mesma coisa. E quero dizer, em cumplicidade, que compreendo, às vezes, a maneira com que a psicanálise é capaz de ver, em uma construção importante, intelectual, criadora, o trabalho do sintoma. Há um lado redutor, mas em um sentido racional, um sentido que eu compreendo. E é interessante. Mas eu, filosoficamente, funciono mais no outro sentido. Isto é, eu busco a promessa de grandeza que existe no que é pequeno.
Não o ceticismo, mas a promessa.
A promessa. E isso não é uma crítica. Acho que é normal que o psicanalista seja assim. Mas não aprecio aqueles que tentavam demais jogar nos dois times ao mesmo tempo: ser, ao mesmo tempo, psicanalista e filósofo. Porque, aí, não se distingue mais muito bem entre a crítica e a idealização. Entre a crítica e a ideia, no sentido de Platão. Não se sabe mais muito bem… Há uma desordem. Na minha opinião, é isto o que sempre impediu Zizek de ser completamente filósofo. Gosto muito dele, mas, aos meus olhos, ele não é completamente filósofo(risos).
Sobre sua amizade com Zizek, ele disse, acho que em um diálogo que vocês tiveram: “Badiou e eu nos jogamos flores, mas na realidade nos odiamos”. (risos) … É uma brincadeira.
Acho que para mim isto não é verdade. Eu não odeio o Zizek de maneira alguma.
Penso que ele não o odeia.
Uma vez, em um colóquio em Londres, Zizek disse: “Badiou é o pai de todos nós. Ele é como Parmênides para Platão. Mas Platão, em O sofista, mata o pai. Ele matou Parmênides. Então, talvez o que eu vou dizer possa matar Badiou.” E eu disse, depois, discutindo com ele: “Não é tão fácil matar o pai.”
Ele se defende.
Isso. Claro!
E com respeito a Laclau?
Acho que a obra de Laclau que eu conheço – e que respeito, porque é uma obra contemporânea, sobre os problemas coletivos, particularmente interessante… – Mas é um pouco distante de mim. É algo que eu respeito, que eu conheço, mas, para mim, não tem uma utilização real. Então eu tenho uma relação completamente tranquila, pacífica, com Laclau. Mas, em parte, porque tenho a impressão de que não estamos exatamente no mesmo território.
E, por exemplo, o conceito de “evento”. Quais as diferenças neste conceito entre o seu uso e o uso de Zizek?
É uma questão muito difícil. Mas meu interesse no eventonão é o evento. Meu interesse é a organização das consequências. Porque, neste ponto, minha categoria essencial é verdade. E a verdade é uma organização subjetiva das consequências do evento. Ao passo que tenho a impressão que, para Zizek, o evento em si é mais importante. Enquanto, para mim, o evento é subordinado à explicação de como ele pode ter verdade. Para que ele tenha verdade, é preciso que ele tenha uma ruptura na situação, e esta ruptura é o que eu chamo “o evento”. Ao passo que, para Zizek, acho que está mais próximo da negatividade hegeliana. É mais próximo do negativo hegeliano, então tem uma importância criadora em si mesmo. Para mim, o evento é um simples corte, só isso. Na verdade, o evento reduzido a si mesmo não tem interesse algum. Se tomarmos a metáfora de São Paulo, é como a morte de Cristo. Se a morte de Cristo não tivesse tido consequência alguma, ela não teria interesse algum. Diriam: ele veio e ele morreu, só isso. Só há interesse porque ele morreu para isso, para aquilo e foi preciso organizar uma nova igreja etc., e, mais tarde, tem toda a religião cristã que segue. Mas, ao contrário, se nos prendemos ao evento em si, dizemos: Bom… é isso: Deus morreu.” E, a partir de “Deus morreu”, faremos considerações. Acho que não há, na filosofia de Zizek, um equivalente à minha doutrina da verdade. É esta a diferença, e é por isso que ele é sempre associado a um certo ceticismo. Porque quando escutamos Zizek, ouvimos sempre o cético. Ouvimos o não-tolo. E isto é grave, porque concordo com Lacan: o não-tolo vagueia, se equivoca. E quando escutamos Zizek, escutamos: vou mostrar que aquilo que vocês acham formidável não tem nada de formidável. Este é o lado psicanalítico. O lado de reduzir o que é grande ao sintoma. É neste sentido que afirmo que ele está demasiado inclinado para esse lado para ser verdadeiramente um filósofo. Mas eu não o odeio de maneira alguma. Não o odeio mesmo. Eu o amo. Mesmo. Mas não tenho certeza se ele me ama.
Falar do outro é um modo de amar o outro. Ele falou do seu trabalho quando conversamos em Ljubljana. Só mais uma questão. E o futuro? Porque você não é um cético como Zizek. Como você pensa o futuro? O futuro em geral, o futuro da psicanálise…
Acredito que a situação presente é muito difícil. Eu sou fundamentalmente otimista. Não sou cético como Zizek. Mas eu penso que a situação atual é uma situação muito difícil porque estamos indo à guerra. Se as coisas continuarem como continuam, vamos à guerra. Necessariamente. A terceira guerra mundial. Ela está se formando.Ela se forma entre os Estados Unidos e a China há muito tempo. Haverá dois blocos que já podemos ver. Haverá os Estados Unidos e os ocidentais seguindo atrás. E, do outro lado, haverá a Rússia, a China… Por enquanto, em escala mundial, é isso. E só um freio rotundo às contradições do capitalismo mundial pode impedir essa guerra. E é nisso que devemos trabalhar. E é isso que eu chamo o novo comunismo, mas você pode chamá-lo como quiser. Mas a guerra… essa guerra… não sei. Talvez seja uma guerra limitada. Talvez seja uma guerra… Ela já começou, de certa maneira. Ela começou na Síria. Ela começou no mar da China. Todo mundo está se rearmando. Todo mundo está organizando novos exércitos, construindo novas armas. E estou muito chocado com as declarações de Putin e dos chineses, afirmando que, agora, eles têm armas que lhes permitem atingir os Estados Unidos, atravessar a cortina de defesa americana, porque são foguetes que se movem na velocidade da luz. Mas ninguém prestou atenção nisso, enquanto os chineses e os russos declararam ao mesmo tempo, há mais ou menos um ano. Então eu não sei… Esta é a análise objetiva. É a análise objetiva e… Há, entretanto, forças que trabalham contra isso. Principalmente na juventude. Mesmo se sejam forças um pouco cegas. Existe mobilização. Existem protestos. Há também uma crise do sistema político muito clara. O fato de os americanos terem eleito Trump, o fato do que se passa aqui com o Macron, o Brexit na Inglaterra que é patológico, o crescimento da extrema-direita em países como a Polônia, a Hungria ou a Itália… tudo isso criou uma situação muito nebulosa, muito complicada, e isso favorece a guerra. Porque quando não conseguimos resolver os problemas, a guerra é uma tentação. E as pessoas podem mesmo dizer: “Mas sim, a guerra agora é mais simples.” E, de toda forma, é preciso pensar em unir todas as forças que, por uma razão ou outra, podem trabalhar na direção de uma nova forma de paz. Mas não é simples e acho que, nada está dado, e por enquanto, as forças políticas positivas, portadoras de um futuro, nunca estiveram tão fracas. Nunca estiveram tão fracas desde o século XIX. Posso comparar a situação atual à situação que existia antes da primeira guerra mundial, em 1914. Era a mesma coisa. Havia rivalidade entre França e Inglaterra de um lado e a Alemanha do outro. Ninguém via como resolver o problema. As forças de esquerda estavam realmente muito fracas. Isto foi mascarado pelo fato de que houve a Revolução de Outubro. Mas, na verdade, dois anos antes da Revolução de Outubro, ninguém via o comunismo no mundo, ele não existia. Então a fórmula que eu uso geralmente é uma fórmula de Lenin. Lenin disse, nos anos 1914, 1915: “Ou a revolução impedirá a guerra, ou a guerra provocará a revolução.” Aconteceu a segunda hipótese. Duas vezes. A primeira guerra mundial provocou a Revolução Russa. A segunda guerra mundial provocou a Revolução na China. Eu preferiria que tivesse se dado a outra hipótese, que a revolução impedisse a guerra. Mas não é o que ocorre frequentemente.
Uma ardente paciência
O que é paixão, caro Alain? Qual é o lugar da paixão e do desejo na experiência contemporânea?
A.B.Uma “paixão” é um laço de certa forma “global” a uma figura insistente do desejo, seja ela uma pessoa, uma atividade, uma ideia… A paixão não desapareceu hoje em dia. O que acontece é que o grande comércio tenta se utilizar dela, deturpá-la na direção de mercadorias rentáveis.
Você citou Platão, identificado por suas palavras: “quem não começa com o amor, nunca saberá o que é a Filosofia”. Podemos parafraseá-lo para dizer que “quem não começa com o amor, nunca saberá o que é a Psicanálise”?
A.B.Acredito que sim. Para dominar a terrível questão da transferência (e da contratransferência) o psicanalista deve ter esclarecido seus próprios desejos e experimentado o que se passa no amor – a saber, como diz Lacan: “o acolhimento do ser de um outro”
Você já disse que a histeria é revolucionária e que a reação é obsessiva. A partir disto, seria a melancolia uma forma de lucidez?
A.B.Eu acho, na verdade, que a lucidez está ligada a uma forma de paciência. Penso em Rimbaud, que declara que “armados de uma ardente paciência, entraremos nas cidades esplêndidas”. A melancolia pode, de fato, ser paciente, ter a lucidez da paciência, mas ela não é uma “ardente paciência”. Ela é exageradamente pessimista.
Costumamos pensar que o amor é cego, e acreditamos em simetrias (sempre imaginárias), mas você pensa o amor em relação à Diferença.
A.B.Justamente: o amor é exposto à Diferença absoluta de um outro Sujeito. Tenta-se, muito comumente, imaginar que esta Diferença não existe – é a teoria do amor como fusão. Mas, como vimos em Tristão e Isolda, o amor-fusão só se realiza na morte. O amor vivo deve se aceitar e se atravessar sem enfraquecer a diferença.
Do seu ponto de vista, pode-se pensar a Psicanálise como uma experiência apaixonada e amorosa? (Mesmo se qualquer sexualidade explícita, exceto a fala, é proibida…)
A.B.É certamente uma experiência tensa, às vezes apaixonada. Mas o objetivo fundamental é passar da impotência (imaginária) ao impossível (real). E, para isto, acredito que a subjetividade dominante deva ser, como em política, uma “ardente paciência”.