Realidades & Ficções II
Print the legend
Em um velho western de John Ford, o homem que matou o facínora, acontece o seguinte diálogo entre ransom stoddard e o diretor do jornal Morning Star, obrigado a escolher entre os fatos e o mito:
–You’re not going to use the story, Mr. Scott?
–This is the west, sir. When the legend becomes fact, print the legend.1
Mesmo em um meio de comunicação onde tenta-se retratar a realidade, como um jornal, a conhecida frase mostra o privilégio dado à ficção. a ficção –por isso se imprime– constitui e dá forma à realidade. isso acontece no Far West e também no longínquo sul que habitamos (onde foi acalentado o realismo mágico, ou seja, um realismo que se constitui retroativamente a partir da magia, que poderíamos pensar também como uma das formas da ficção). E acontece também onde quer que seja, porque não existe algo como uma realidade asséptica, imune ou refratária à ficção, daí o acerto de definir como tema do congresso da Fepal deste ano esse par conceitual.
Isso não significa ignorar a realidade dos fatos em seu lado real, só que um fator diferencial da abordagem analítica é poder dissecar o modo em que a ficção configura a realidade.
Este número de Calibán forma uma série com o anterior, ambos dedicados a pensar o eixo realidade/Ficção em psicanálise. Continuamos, assim –na nossa seção Argumentos–, a publicação dos textos escolhidos pela Fepal para lançar a discussão e que formam a estrutura central do XXX Congresso latino-americano. Com o seguinte matiz: desta vez, não só participam analistas de destaque da nossa região como também convidados da Europa e dos Eua: antonino Ferro e Jay Greenberg.
a cada vez que um paciente se desespera para recuperar um sonho exatamente como foi, a cada vez que outro procura precisar metodicamente esse ou aquele episódio da sua infância ou nos detalhar a rotina dos seus dias ou inclusive o que ele entendeu sobre uma interpretação do analista, desdenhamos da precisão fáctica –o que ou quando ou onde aconteceu– e privilegiamos o relato que o analisando constrói na sessão, o modo como recorda o que lhe foi dito, a maneira –aqui é o oeste, sr. Quando a lenda torna-se fato, imprime-se a lenda.
Como, retroativamente, construiu sua infância, porque sabemos do poder encobridor das lembranças e da onipresença do fantasma, e sabemos também que o jogo é jogado no relato disso, que acontece durante a cura. Enfim, sabemos que a verdade tem estrutura de ficção, como propunha lacan, apesar de Freud já sabê- lo. sabemos que a realidade se constrói como se fosse uma ficção. Daí, talvez, que Thomas ogden, convidado pela Fepal para participar do congresso com um texto, enviasse para nós fragmentos de um romance, de uma ficção, para falar da sua concepção da psicanálise. é o que publicamos em Fora de Campo, junto aos ecos da discussão que suscitou em uma das sociedades brasileiras.
Na seção Clássica & Moderna, resgatamos um analista mítico, Enrique Pi- chon-rivière. um pioneiro latino-americano, para quem o fato de haver nascido em Genebra foi apenas um acidente, e sobretudo alguém sobre o qual é difícil resgatar a facticidade da biografia depois da sua figura carismática e de sua vida e ensino cheios de histórias. aqui também cabe propor a pergunta sobre o que diferencia realidade e ficção, e nesse sentido optamos por um Print the legend! Porque o ensinamento e a figura de Pichon, “o maior analista argentino” na definição da nossa entrevistada do número anterior, élisabeth roudinesco, são realmente lendários. seu compromisso clínico e social, sua heterodoxia e sua originalidade teórica, sua busca para além das fronteiras profissionais, sua per- meabilidade à arte e à cultura convertem-no em um mestre da psicanálise que –gostamos de imaginar– talvez teria gostado desta revista.
Na seção De Memória, e ao se completarem cem anos da publicação daquele artigo freudiano que propunha uma história do movimento psicanalítico, quisemos fazer o mesmo com a sua expressão latino-americana. Queríamos como editores rastrear as peripécias do movimento, suas escalas e desafios, seus acertos e suas dívidas pendentes. Queríamos retratar a realidade do movimento psicanalítico latino-americano hoje e para isso convocamos três prestigiosos analistas da Fepal: Moisés lemlij, leopold nosek e Marcelo Viñar, a quem transmitimos nossa proposta. Pela sua experiência, pela sua lucidez e pelas posições institucionais que ocuparam, pensávamos que estavam mais bem situados do que ninguém para retratar, tal como pretendíamos, a realidade psicanalítica latino- americana. Mas vimos que seus textos não refletiam com precisão fidedigna o mapa regional da psicanálise, nem algo semelhante a isso. recebemos, pelo contrário, três testemunhos fragmentários, tão parciais como luminosos, do compromisso e das ideias de três analistas que, em vez de historiar a psicanálise latino-americana, ocuparam-se de narrar a genealogia ou as peripécias de algumas das suas sociedades ou dos seus pioneiros, ou de recuperar o poder subversivo de algumas perguntas ligadas à política das instituições. novamente aqui, em vez do mapa das realidades que pretendíamos, recebíamos ficções. E as imprimimos, junto a um quarto artigo de lucía rossi que, de fora das nossas instituições, amplia a nossa perspectiva.
Talvez com a história também trate-se disso, de reconstruir realidades coletivas a partir de ficções incompletas e singulares, subjetivas, refratárias a qualquer ideia de totalidade.
A seção Vórtice deste número debate em torno de uma pergunta que nos propusemos: quem pode ser analista? sua editora, lúcia Palazzo, descreve na introdução os temas que se desenrolam através de um conjunto heterogêneo de textos de colegas de toda a região e dos Eua. ali encontram-se aspectos relacionados à orientação sexual, às diferenças étnicas, às condições psicopatológicas etc. e sua relevância relativa no momento em que alguém se converte em psicanalista.
Em Textual apresentamos uma entrevista que realizamos com o prestigiado escritor mexicano Juan Villoro ao redor do tema realidade e Ficção. E o Dossiê prolonga o espaço para os estrangeiros na nossa revista ao continuar com a série de textos dedicados a retratar a época da psicanálise, o modo como nossa disciplina impactou outros saberes. aqui publicamos artigos escritos por ensaístas de destaque e com projeção internacional: Mariano Ben Plotkin, a partir da história; Mónica Cragnolini, a partir da filosofia; Eduardo Grüner, a partir das ciências sociais; Esther Díaz, a partir da epistemologia; Mariza Werneck, a partir da antropologia; além de um texto com um particular frescor de um relevante designer brasileiro, ronald Kapaz, onde –como não podia ser de outra maneira, e assim como acontece em toda boa interpretação psicanalítica– a forma adquire tanta relevância como o conteúdo.
A partir deste ano, imprimimos Calibán em outro tipo de papel, que tem menos brilho e glamour do que o papel couché que vínhamos utilizando, mas que fará com que seja mais fácil para o leitor escrever sobre a revista, e que cada um de vocês, enquanto o interlocutor crítico que imaginamos, converta-se também em um autor.
O backstage de Calibán
assim como quem se sente tentado a ir aos “extras” para ver mais, quando termina de assistir, entusiasmado, um filme em vídeo, talvez convenha fazer uma espécie de making of de Calibán, esboçar seus bastidores para que o leitor conheça algo sobre a complexidade da sua edição.
Este é o quinto número de Calibán, reformulação do velho projeto de uma revista latino-Americana de Psicanálise, e vale a pena fazer um balanço sucinto. sobretudo porque se sabe que boa parte dos empreendimentos editoriais, das mais variadas disciplinas, naufragam antes do seu terceiro número e são poucos os que chegam ao quinto com regularidade. apenas a partir do apoio entusiasta dos leitores, de quem participa da sua edição e de quem a apoia a partir das suas responsabilidades institucionais foi possível chegar até aqui.
Esse projeto editorial implica um grande esforço da Fepal, tanto criativo e científico como financeiro, operacional e logístico, pois trata-se de uma revista que aspira a editar dois números por ano, de alta qualidade, tanto em seus conteúdos como em sua forma, em três idiomas diferentes, chegando, por sua vez, a leitores de toda a américa latina e de outras regiões. é um esforço coletivo no qual já se comprometeram três comissões diretivas da nossa federação: a que acalentou a ideia de uma nova revista, presidida por leopold nosek, a que colaborou para a sua institucionalização, presidida por abel Fainstein, e a que assumirá a partir do congresso deste ano, presidida por luis Fernando orduz. sempre nos sentimos tentados a ver o que falta ser feito, mas às vezes convém também perceber o que já fizemos.
Passamos, em muito pouco tempo, de editar uma revista a cada dois anos para editar duas revistas por ano, ambas em edições idênticas, impressas em dois idiomas, em países diferentes e quintuplicando a tiragem. além disso, trabalhamos no lançamento da edição de Calibán em inglês enquanto colaboram conosco tradutores de cinco línguas diferentes. na edição da revista, trabalham de um modo ou de outro –tanto nos aspectos editoriais como nos técnicos– cerca de 60 pessoas de toda a região. Pelo formato que adotamos, composto por seções de distintos estilos e características, podemos abrigar a diversidade de vozes presente no nosso continente e, ao mesmo tempo, aprofundar-nos nas linhas centrais da nossa prática. a cada número, publicamos três dezenas de textos, o que faz com que, em apenas cinco números editados, tenham podido expressar suas ideias cerca de 170 colegas e intelectuais de destaque. tentamos estar atentos para que, tanto entre os autores como entre os membros do staff, haja a maior representatividade possível, tanto geográfica como teórica e institucional.
Tentamos refletir a variedade do pensamento psicanalítico latino-americano e estimulamos permanentemente –com maior ou menor sorte– autores de posições diferentes a nos enviar suas ideias.
Calibán tem uma política editorial, claro –que emana dos seus estatutos, acordada entre os editores e as diferentes sociedades da região–, pois não pretende ser uma revista asséptica nem anódina, mas sim assumir riscos, ser ousada no melhor sentido da palavra (e é esse o significado de “ousadia” presente na palavra antilhana canibal, de cujo anagrama formamos nosso nome). Mas, ao mesmo tempo, queremos que seja uma revista não procustiana, uma revista capaz de receber ideias, formatos, pensamentos diversos que reflitam modos distintos de pensar a psicanálise.
Além de publicar textos psicanalíticos –escritos de formas variadas, mas onde predomina o gênero ensaístico–, demos um espaço generoso para estran- geiros à nossa disciplina como escritores, filósofos, artistas, sociólogos etc., de grande relevância internacional, que nos honram com as suas colaborações. Estrangeiros que também nos ofereceram seu pensamento em construção nas entrevistas que publicamos, uma série de testemunhos que talvez algum dia mereçam, reunidos, um formato de livro.
A arte tem um lugar privilegiado em Calibán. não só pelo cuidado com que desenhamos e diagramamos cada número, no modo em que as intervenções artísticas são tratadas (como se fossem parte da interlocução), mas também pelo prestígio dos artistas que nos cedem as suas obras. tentamos fazer uma re- vista que, para apreender seu Zeitgeist, se adiante. E, para isso, nada melhor do que seguir os artistas. nesse ponto, também gostamos de nos pensar com alguma ousadia nas nossas escolhas, como pode-se notar nas capas e segundas e terceiras capas deste número de Calibán. o instigante trabalho de Marcos López, afastado tanto dos códigos tradicionais de beleza como dos standards das revistas psicanalíticas, evidencia um modo tão distinto como provocador de pensar o latino-americano.
Muito se fez e muito também falta ser feito: pudemos resolver melhor as complexidades do envio das revistas através de um continente que tem mais de 22 milhões de quilômetros quadrados, serviços de correios ineficientes e obstáculos aduaneiros inverossímeis, do que ter um sistema de pagamento ágil e confiável para que a crescente quantidade de colegas que querem assinar Calibán possam fazê-lo com a mesma facilidade de comprar um livro em amazon ou pagar seus impostos online. Enfrentamos obstáculos desse tipo, que em muitos casos são semelhantes aos que enfrentaria uma empresa multinacional para distribuir seus produtos, sem que a Fepal o seja: somos apenas um grande grupo de psicanalistas –e enquanto tais passamos muitas horas por dia fechados nos nossos consultórios– trabalhando com paixão e engenho para fazer avançar este projeto editorial.
A escola do fracasso
Talvez seja bom mencionar o contexto em que preparamos este número de Calibán: ele foi editado em meio ao campeonato mundial de futebol, realizado no Brasil e acompanhado atentamente no mundo inteiro. não é casual, então, que seja o rio de Janeiro, cidade lendária onde se jogou a final da Copa, uma das nossas Cidades Invísiveis.
A essa altura, está claro que o futebol, enquanto fenômeno coletivo, ocupa um lugar incomparável na cena mundial, e a partir das peripécias do torneio surgiram debates apaixonados em que os psicanalistas não estiveram ausentes. Entre todos os assuntos que circularam em discussões emocionantes, há dois que nos tocam particularmente: o da derrota e o da pátria.
É claro que em um torneio há apenas um vencedor, e o resto –de um modo ou de outro– terá de enfrentar o fracasso. nós sabemos algo sobre isso porque toda a história da psicanálise bem poderia ser descrita como uma história de derrotas.
Por um lado, em um sentido que cabe recuperar, o náutico: derrotas são os rastros que os navios vão deixando pelo caminho, e a psicanálise, ao ter se expandido pelo mundo a partir da diáspora de vários pioneiros da Europa Central, deixou uma série de pegadas que podem ser lidas, e, a partir dessa leitura, pode ser reconstruída a história da nossa disciplina. as derrotas em psicanálise também podem ser pensadas em outro sentido, o militar. E novamente nos revelamos na contramão de qualquer outra disciplina ou práxis do saber humano, onde o que são narrados são os êxitos, comemorados em celebrações e monumentos, descritos nas genealogias de cada ciência.
Não houve uma descoberta em psicanálise que não tenha implicado um resto de perda: foi necessário perder os achados do trauma real para encontrar os efeitos do fantasma na teoria da sedução; foi necessário perder o desejo de alinhamento sem fissuras com a ciência para encontrar a singularidade de uma disciplina que cavalga com dificuldade entre ciência, arte e artesanato clínico; foi necessário perder o espaço de primeira fila que modas ocasionais nos reservavam para encontrar esse lugar estrangeiro na cidade que cabe tão bem à psicanálise; foi necessário perder qualquer desejo de totalidade para trabalhar a partir dos estilhaços deixados ao atravessar a castração.
a escrita de Freud, como a de muitos dos seus seguidores, sempre tem um sabor melancólico, mesmo quando descreve descobertas que poderiam ter desatado um entusiasmo maniforme. Enquanto suas indagações avançavam, do mesmo modo que as de muitos outros autores, uma sensação de perda vai se apoderando do tom dos seus escritos e de seus ensinamentos: o encontro com o que não foi possível, a invenção que revela seus buracos e falências, o otimismo ferido, certamente a presença próxima da morte. Em nossos pacientes acontece algo semelhante: para além do entusiasmo que encontra quem se aproxima do final de uma análise, do novo modo de habitar seu desejo e da liberação de energia que isso implica, há também uma perda em jogo. um ar melancólico invade tanto o analista como quem se deitou por anos em um divã, quando chega o momento de ir embora.
O processo de formação de um analista não é acumulativo, não é um cursus que poderia levá-lo de modo direto –como em muitas outras disciplinas– a um lugar de prestígio e de saber atingido. trata-se mais propriamente de um processo que, através da sua análise pessoal, o levará a assumir a sua própria perda, e é a assunção de uma falta de saber o que lhe permitirá encarnar o embuste de um saber suposto para os seus analisandos.
Se a inabarcável literatura analítica fosse rastreada, com certeza ratificaríamos que nossa disciplina tem menos a ver com a vitória e com o “sucesso” do que com a derrota e com o fracasso.
Nós que editamos Calibán nos acostumamos a fazer uma revista periódica sem certeza nem garantia de que haverá uma seguinte. E talvez esse seja o melhor modo, a partir de um lugar que não desconheça –como no futebol– a possibilidade da derrota e do fracasso, de que, a cada vez que acabamos de editar um número, já se avista o tema do próximo.
Em qualquer competição entre países está presente a tentação chauvinista, o modo em que frustrações ancestrais procuram se redimir na arena simbólica do jogo, nas rivalidades que se amplificam ao ponto de que é mais valioso ver perder o país vizinho do que vencê-lo. Em um continente ainda submerso em dificuldades como o nosso, esse é um luxo ao qual não podemos nos permitir. não podemos nos permitir não nos alegrarmos com a surpresa que foi a Costa rica até para eles mesmos ou com a potência apresentada pela Colômbia; não podemos nos dar o luxo na américa latina de não protestar contra o excessivo castigo a uma mordida uruguaia ou não nos identificarmos com a tremenda pressão suportada pelo jovem time dono da casa; não podemos não desfrutar do crescimento de seleções como a chilena ou que a argentina tenha chegado à final. simplesmente tratam-se de luxos que não podemos nos permitir em um continente tão frágil como o nosso. Pelo menos, não por enquanto.
E não porque prestemos uma atenção excessiva à ideia de pátria, nem sequer à latino-americana. De fato, em psicanálise conhecemos bem a barbárie a que se chegou explorando as paixões nacionalistas e temos um aparelho teórico capaz de destrinchar boa parte das molas dos fenômenos de massa desencadeados aí. não é também um dado menor que nossos pioneiros –Freud, o pri- meiro– tenham sido habitualmente um grupo de apátridas que tiveram de ir de um país a outro, nem que o lugar de analista se identifique muito bem com o de estrangeiro. não podemos nos permitir o luxo de não formar uma comunidade pelo fato de que, para o bem ou para o mal, na américa latina nos une o mesmo tipo de dificuldade, a mesma distância dos centros de poder econômico ou intelectual, as mesmas línguas menores.
Esta revista surge da convicção de que há luxos ao quais não podemos nos dar. E aqui ganha destaque um terceiro ponto que a Copa do Mundo deixa em evidência: o de equipe. não teríamos podido chegar a este quinto número de Calibán sem uma equipe. uma equipe ainda em processo de consolidação, mas grande o suficiente para não poder ser listada aqui (apesar de todos os seus nomes e funções estarem registrados na página do staff).
Uma equipe que poderia ser uma seleção latino-americana, onde há editores do Brasil, da Colômbia e do uruguai; onde há seções coordenadas por colegas que vivem na argentina ou na Venezuela; onde podem trabalhar juntos tradutores de Montevidéu ou de são Paulo com diagramadores de Córdoba ou um coordenador em Mendoza. uma equipe que certamente irá se assentando, ao mesmo tempo em que permitirá mudanças e dará lugar aos novos jogadores que virão. uma equipe que pretende ser melhor do que cada um dos seus integrantes, claro, mas também melhor do que a mera soma de todos.
Não é simples integrar uma equipe de trabalho que fala línguas distintas, vive em países distintos e em muitos casos nem sequer se conhece cara a cara, mas essa foi a aposta desta revista desde o começo. a revista que entre todos e em cumplicidade com autores e leitores fazemos é, claro, perfectível: tentamos fazer com que cada novo número seja um pouco melhor do que o anterior, e é o leitor quem julgará o produto final do nosso trabalho.
Mas, voltando aos temas do fracasso e da pátria, há uma filigrana que atravessa de modo quase invisível este número, que talvez fique transparente, mas que não é demais explicitar: enquanto o editávamos, assistíamos aos jogos do “Mundial”. Enquanto nossos respectivos países triunfavam ou saíam derrotados da Copa do Mundo, enquanto passavam de uma instância a outra ou se despediam de terras brasileiras, enquanto o mercado de apostas se tensionava, aplicam-se sanções injustas ou se discutiam avaliações e em meio a uma ensurdecedora guerra de palavras de ordem e cânticos nacionalistas… em meio a tudo isso, uma catarata de correios eletrônicos circulava entre nós, de um país latino-americano a outro, na contracorrente das maiorias, onde os bandos se desfaziam (ou quase, admitamos), e cada um apoiava o país do outro. Como se fôssemos não só uma equipe, mas sim uma grande torcida.
Enquanto jogo, o futebol também tem muito de ficção. sem por isso deixar de ser uma realidade. E só incluindo o ficcional –seus míticos príncipes Messi e neymar, estrelas fulgurantes como James rodríguez, lutadores como Mascherano ou canibais irredimíveis como luis suárez– pode-se perceber sua realidade particular. Essa realidade mítica latino-americana é a que tentamos destilar com os instrumentos que a psicanálise nos oferece e que imprimimos, como qualquer outra lenda, a cada número de Calibán.
Mariano Horenstein
Editor-chefe Calibán – RlP
1. –Não vai usar a história, sr. scott?
–Aqui é o oeste, sr. Quando a lenda torna-se fato, imprime-se a lenda.