Excesso

Calibán volume 11, nº 2, ano 2013
Excesso

Geografia do excesso

A psicanalista italiana Lorena Preta conduz há anos um grupo de investigação internacional chamado “Geografias da Psicanálise”. No seu seio vem sendo dis- cutida –sem que se caia em um enganoso relativismo cultural– a validade das teorias e do método psicanalítico em outras culturas, e o modo como elas testam, questionam e ao mesmo tempo enriquecem nossas ideias fundamentais.

Ao longo do seu trabalho, o “Outro” que questiona a psicanálise, produto da civilização ocidental, é o Oriente: a Ásia, os países muçulmanos, especialmente. Nossa psicanálise, introduzida por pioneiros formados na Europa e em perma- nente contato com essa tradição, tem laços estreitos, sem dúvida, com ela. Mas cabe que nos perguntemos, por sua vez, em que se diferencia, em qual ponto o “Extremo Ocidente”, que poderia ser a América Latina para a Europa, possui marcas particulares. No caso de tê-las, uma delas bem poderia ser a do Excesso.

Nos anos 60-70 do século passado, a literatura escrita na América Latina apareceu na Europa através do que ficou conhecido como “o boom”. À medida que escritores como Gabriel García Márquez, Julio Córtazar ou Mario Vargas Llosa iam ficando conhecidos fora da nossa região, se criava a categoria de “rea- lismo mágico” para classificar o que a literatura do boom contava. O chamado realismo mágico, apesar de haver levantado questionamentos1, permitiu uma visibilidade internacional importante para nossos escritores e nossa realidade.

Mas García Márquez –a nave-mãe do boom– indica um erro inicial de apreciação: o que para os europeus era realismo mágico, aqui na América Latina era realismo puro e duro. Vale a pena citá-lo: “A vida cotidiana na Amé- rica Latina nos mostra que a realidade está cheia de coisas extraordinárias. Sobre isso costumo citar sempre o explorador norte-americano F.W. Up de Graff, que no final do século passado fez uma viagem incrível pelo mundo amazônico, onde viu, entre outras coisas, um riacho de água fervendo e um lugar onde a voz humana provocava inundações torrenciais. Em Comodoro Rivadavia, no extremo sul da Argentina, ventos do polo levaram pelos ares um circo inteiro. No dia seguinte, os pescadores tiraram das suas redes cadá- veres de leões e de girafas (…). Não há nos meus romances uma linha que não esteja baseada na realidade”2.

Essa realidade latino-americana, na surpreendida visão dos conquistadores es- panhóis, mostrava de que modo estava construída: com o mesmo estofo da ficção3. E esse erro de apreciação, que García Márquez atribuía ao racionalismo europeu, talvez tenha se originado da sua dificuldade para perceber o Excesso que pareceria nos constituir. Se isso é válido para a América hispânica, torna-se hiperbólico quando se trata do Brasil, onde tudo parece acontecer em outra escala, mais grande4.

O boom latino-americano na literatura não teve um homólogo na psicaná- lise. Para o bem ou para o mal, e apesar da agudeza clínica, da efetividade teórica e das contribuições criativas dos nossos pioneiros e mestres, não houve um boom da psicanálise latino-americana fora da nossa região. Com exceção de referências esporádicas devidas ao acaso ou à insistência ou à lucidez e à abertura de alguns (poucos) europeus, aqueles entre os nossos autores que conseguem driblar a distância que existe de uma América a outra ou que conseguem atravessar o Atlântico não são muito numerosos. Nem falemos de outra distância igual ou mais difícil de driblar: a da tradução. Não é raro que um analista latino-ameri- cano leia em inglês ou em francês; apesar do fato de que, sim, seja raro que co- legas de outras regiões leiam em espanhol ou em português. Portanto os destinos da nossa produção estão necessariamente atados às possibilidades de sua tra- dução. Sobre a questão das traduções –não é esse o contexto para desenvolvê- la–, devemos a nós mesmos um debate, porque aí estão em jogo questões de índole tanto econômica como teórica e inclusive ética. De um modo ou de outro, fazem parte desse muro invisível que as línguas “maiores” transpõem melhor que as nossas na hora de difundir a psicanálise com um sotaque regional.

Claro que –contra uma visão ingênua e folclórica– nem tudo é Excesso nes- tas terras. Há também um pensamento analítico, capaz de destilar, da atmosfera frondosa que por momentos nos embriaga, seus óleos essenciais, os articulado- res que permitem ser inteligível a realidade da nossa clínica, impregnada pela cultura que habitamos.

Esse contraponto entre a exuberância do Excesso e o seu destilado conceitual aparece também no aspecto gráfico deste número de Calibán. Os artistas que generosamente nos oferecem seu trabalho não o fazem enquanto meros ilustra- dores dos nossos textos. Suas obras também não são caprichos estéticos, ador- nos, apenas, para que cada número da nossa revista seja atraente, para que motive a vontade de tê-lo em mãos, de sentir seu peso e sua textura, de cole- cioná-lo. Ao seu modo, os artistas que nos acompanham são também autores de cada número de Calibán.

As performances impactantes da guatemalteca Regina Galindo colocam o Excesso em primeiro plano, assim como o trabalho sutil da argentina residente em Amsterdã Irene Kopelman, que atravessa de modo quase invisível a revista, mostra o seu revés. Ali é mostrado o contraponto –à maneira de Wittgenstein e da sua indicação de que, para o que não é possível dizer, o melhor é mostrá-lo– entre o Excesso e a sua desconstrução.

A parte gráfica se completa com o trabalho de design geral de cada número, responsabilidade de Lucas di Pascuale, e os croquis de Daniel Villani que ilu- minam, a partir de fotografias icônicas de cada cidade, a seção de crônicas.

Em Argumentos, nossa seção doutrinária, cinco analistas de destaque da região realizam a dissecação da noção de Excesso. Em rigor de verdade, fazem incursões ao redor dessa noção, exploram fragmentos, esquadrinham, a partir de pontos de vista sempre singulares. Seria um excesso abordar o Excesso como totalidade en- ganosa, então privilegiamos os enfoques parciais: a sexualidade feminina, o corpo, a crítica das abordagens habituais do excesso, a pulsão e a lei, a adolescência… são apenas alguns dos ângulos a partir dos quais os autores trabalharam.

Além das habituais, este número de Calibán inclui duas novas seções: a primeira delas é Fora de Campo. Com esse nome fazemos alusão, em um revista temática –e que consequentemente põe o foco em determinado tema–, a aqueles temas que ficam de fora do enfoque central, mas que podem dialogar com ele. Na outra seção incorporada, Extramuros, nos ocupamos de textos que, prove- nientes do campo analítico, façam uma incursão para além das fronteiras da clí- nica, ou pelo menos da clínica tal como é desenvolvida nos nossos consultórios. Em ambas seções incluímos desta vez artigos premiados pela Fepal.

Em O Estrangeiro, o prestigioso ensaísta David Oubiña desenvolve algumas ideias sobre o lugar do Excesso no cinema.

Dando continuidade à série que iniciamos com São Paulo e demos sequência com Bogotá, em Cidades Invisíveis apresentamos uma nova “crônica analítica”. Dessa vez sobre Caracas, cidade que pareceria condensar neste momento vários dos aspectos chave do Excesso latino-americano.

Em Clássica & Moderna, a seção onde tentamos exercitar, questionar a par- tir da nossa contemporaneidade os grandes clássicos latino-americanos, incluí- mos um panorama do pensamento de Luisa Álvarez de Toledo.

Textual, a seção de entrevistas da nossa revista, inclui uma realizada no México com o antropólogo Néstor García Canclini. O leitor certamente consi- derará estimulante o seu pensamento sobre a realidade latino-americana, abor- dada em seus numerosos livros e que se desdobra no diálogo ágil e inteligente que publicamos. Quase como um antídoto contra a nossa própria identificação com o realismo mágico, García Canclini propõe como ler o Excesso, definindo três perguntas centrais sobre ele: como é representado, por quem e com quais objetivos.

O objetivo dessa seção, como de outras como O Estrangeiro ou os dossiês que continuaremos a publicar periodicamente, é ampliar nosso enfoque, con- taminá-lo para torná-lo mais eficaz. A partir da política editorial de Calibán, acreditamos que a pureza do nosso enfoque psicanalítico não está apenas no desejável diálogo entre pares (por mais que falemos línguas distintas, que habi- temos distintas geografias ou que nos orientemos por teorias distintas, temos pontos centrais de coincidência que deixam fora de vista, inexoravelmente, cer- tas questões), mas também no questionamento crítico por parte da ciência e da cultura.

Uma pedra do deserto

A seção Vórtice se destina a tocar em assuntos presentes no debate dos ana- listas de um modo ágil e ao mesmo tempo coral, com textos curtos e variados que possam abrir o campo para reflexão e polemizar sobre temas controversos. Foi assim que nos números anteriores trabalhamos sobre Transmissão e sobre as Publicações psicanalíticas. Neste número, a seção trata de um tema que tam- bém está no centro das discussões contemporâneas na nossa disciplina, o da In-vestigação.

Introduzidos por uma nota da editora da seção, encontrarão um estimulante mosaico de textos, alguns pertencentes a colegas que participam ativamente dos espaços de investigação dentro da comunidade internacional e outros que não, representativos talvez de muitos que praticam nosso ofício e têm com a inves- tigação um vínculo menos conceitualizado, mais afim, em todo caso, com o modo com que Freud concebia a cura, como um efeito, por acréscimo, da deci- fração, tributária da investigação.

Alguns dos autores convidados têm, pela sua posição institucional, uma perspectiva de conjunto que nos pareceu valiosa. Contamos, assim, com uma breve entrevista com Stefano Bolognini, presidente da API, distintos textos do ex-presidente da API, Charles Hanly, e de ex-presidentes da Fepal, como Mar- celo Viñar e Leopold Nosek, do presidente da Federação Europeia de Psicanálise, Serge Frisch, do ex-tesoureiro da API, Moisés Lemlij… Tomara que essa apre- sentação sumária estimule o leitor a ler a seção com espírito crítico com relação a um tema candente que está presente desde a invenção da psicanálise.

Os desenhos de Irene Kopelman, que acompanham tanto a seção como o presente editorial, são quase uma contribuição a mais para a discussão. Talvez valha a pena contextualizar pelo menos uma das séries5.

Depois de uma viagem ao deserto, da qual voltou com várias pedras, a artista se pôs a desenhar durante um mês, na mesma hora do dia, no mesmo lugar, com os mesmos instrumentos, as mesmas condições de iluminação, a mesma pedra. Ao mesmo tempo, iria tomando notas, em uma espécie de bitácula6, do processo, de como seu desenho mudava, de como ela mesma mudava enquanto desenhava. Queria experimentar, em suma –se sempre é percebida a mesma coisa–, como a percepção de um mesmo objeto pode variar por parte de um mesmo observador.

Vendo a série dos seus esboços, chama a atenção que nunca é a mesma pedra que ela desenha… apesar de, sim, ser a mesma que lhe serve de modelo e que se mantenham ferreamente as coordenadas dia após dia. A artista comprova que jamais desenha a mesma pedra e é exposto com lucidez se a observação cientí- fica não terá a mesma precariedade que aquela evidenciada por suas incursões através da arte. Seu trabalho coloca em dúvida qualquer possibilidade de obje- tividade, ao mesmo tempo em que estimula a possibilidade de conhecimento que aninha no desenho, ao seu critério, “um modo de pensar”.

Quão mais complexo do que tratar de uma pedra será tratar de algo vivo, móvel e inapreensível como um sujeito humano (ou mais ainda: um sujeito em transferência com outro)? Mais ainda quando quem registra não é sempre o mesmo, como no caso da artista que desenha e com as exceções do caso. A in- vestigação do singular nos propõe desafios inéditos. Esperamos que esse diálogo seja fecundo e que nos aproxime para tecer as pontes e os pontos de fratura, os modos e os modelos mais aptos para tratar do que nos ocupa diariamente na nossa clínica.

Estado de situação

Com o exemplar de Calibán-RLP que o leitor tem em suas mãos, a revista completa os três primeiros números propostos inicialmente depois de haver sido realizado o relançamento da Revista Latino-Americana de Psicanálise. Essa tarefa é executada sob a base do estímulo e do trabalho de muitos colegas da re- gião que formam o staff, que generosamente publica seus trabalhos, e de duas comissões diretoras da Fepal. Foram publicadas resenhas dos números anterio- res em revistas e jornais especializados de distintos países; registra-se um nú- mero crescente de assinaturas da América Latina e da Europa e, de diversos modos, a revista da nossa Federação vai traçando o seu caminho.

Em relativamente pouco tempo, já foi apresentada em Buenos Aires e em Montevidéu, em Lima e em Córdoba, em Madri e na Cidade do México, no Rio de Janeiro e em São Paulo, e em breve em Montreal. Às vezes no seio de con- gressos ou jornadas locais ou internacionais, onde grande quantidade de colegas se reúne; outras vezes, como no Rio de Janeiro ou em São Paulo, em eventos or- ganizados em conjunto com instituições culturais (o Museu de Arte do Rio – MAR e o Museu de Arte de São Paulo – Masp), gerando intercâmbios férteis com outras disciplinas e contribuindo para arraigar mais nossa prática e nossas sociedades em cada cidade.

Certamente um novo marco em sua divulgação será o próximo 30º Con- gresso Latino-Americano em Buenos Aires, que terá como tema Realidades e Ficções. Os dois próximos números de Calibán serão destinados a esse tema e incluirão –entre outras coisas– os textos centrais do congresso. Os assinantes poderão recebê-los com antecedência ao evento em seus domicílios.

Recebemos cada vez mais trabalhos de colegas de toda a região e convidamos a continuar enviando textos, apesar de saber que as possibilidades de publicação nem sempre correspondem aos nossos desejos como editores: para além do viés temático que cada número possui e do resultado das avaliações em duplo cego que são realizadas sobre os textos, temos uma forte limitação de espaço porque são editados atualmente apenas dois números por ano. Além disso, sendo Cali- bán a revista oficial da Fepal, deve publicar também os trabalhos premiados a cada dois anos e os textos pré-publicados dos congressos regionais. Tal quantia de conteúdos –um saudável excesso talvez–, somada às seções fixas da revista, deixa uma margem de manobra limitada, que tentamos administrar com o maior cuidado, atendendo à maior representatividade regional possível.

Há uma frase de William Blake: “O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria”7. Essa frase bem poderia ter funcionado como epígrafe deste editorial, que é a porta de entrada a um novo número de Calibán. Trabalhamos sobre o Excesso, não para nos regozijarmos prazerosamente nele, senão para desnudar suas notas estruturais, para extrair dele, de suas manifestações clínicas, de suas expressões na cultura contemporânea, algum saber, algumas gotas dessa sabe- doria aludida.

No entanto, não é pelo seu conteúdo que decidimos citar essa “quase epí- grafe”, mas sim por sua origem: ela foi enviada para nós por um leitor da revista, que sabia que trataríamos do Excesso. Calibán pretende ser uma obra em colaboração: com os autores, claro, que oferecem seus olhares férteis através de artigos, testemunhos, entrevistas ou su- gestões de leitura. Também com cada um dos entusiastas integrantes de uma equipe com quem, em diversos países, vamos construindo número a número uma língua comum e compartilhando os desafios da exigente tarefa de edição.

Mas Calibán também pretende ser sobretudo uma obra em colaboração com os leitores, a quem propomos completar por si mesmos, com suas ideias, com suas críticas, com suas observações e sugestões, cada número que publiquemos. O desejo dos editores é que cada número recém-saído da gráfica seja um ma- nuscrito, uma peça original e única onde cada leitor deixe sua marca.

Mariano Horenstein


  1. A ponto de haver sido construído outro grupo, de uma geração posterior e ironicamente chamado de McOndo, que tenta sair do lado exótico do qual parece ter sido vítima a América Latina do boom.
  2. G. García Márquez, El olor de la guayaba. Conversaciones con Plinio Apuleyo Mendoza, Sudamericana, Bs. As., 1993, p. 25.
  1. “Antonio Pigafetta, um navegador florentino que acompanhou Magallanes na primeira viagem ao redor do mundo, escreveu durante sua passagem pela nossa América meridional uma crônica rigorosa que, no entanto, parece uma aventura da ima- ginação. Contou que havia visto porcos com o umbigo no lombo e pássaros sem patas, cujas fêmeas chocavam nas costas do macho, e outros como alcatrazes sem língua com bicos que pareciam uma colher. Contou que havia visto uma criatura animal com cabeça e orelhas de mula, corpo de camelo, patas de cervo e relinchar de cavalo. Contou que colocaram um espelho na frente do primeiro nativo que encontraram na Patagônia e que aquele gigante eufórico perdeu o uso da razão por conta do pavor gerado pela própria imagem. Esse livro breve e fascinante, no qual já se vislumbram os germes dos nossos romances atuais, não é nem sequer o testemunho mais assombroso da nossa realidade daqueles tempos. Os Cro- nistas das Índias nos legaram outros, incontáveis” (La soledad de América Latina, discurso de aceitação do Prêmio Nobel de Literatura, 1992, consultado em 19 de março de 2014 em http://www.ciudadseva.com/textos/otros/la_soledad_de_ america_latina.htm).
  2. Assim os hispanofalantes costumamos chamar –em razão de um desconhecimento da língua– a escala brasileira.
  1. Trata-se de Meditation piece, parte da coleção do Museu Reina Sofía de Madri.
  2. Pode-se ler a respeito em Mahkuzine, Journal of Artistic Research, 2011, pp. 17-20, ou em Art & Research, A Journal of Ideas, Concepts and Methods, vol. 2, no. 2, 2009.
  1. El matrimonio del cielo y el infierno, Proverbios del infierno, 1790-1793.